Não há assunto mais relevante que os acontecimentos na Ucrânia. Ainda mais para quem estuda direito internacional.
Em sala de aula, protegidos pela abstração dos fatos que a academia jurídica é capaz de produzir, podemos confortavelmente opinar que a invasão da Ucrânia pela Rússia é um ato ilegal perante o direito internacional: a intervenção armada viola os princípios fundacionais da Carta da ONU.
Devemos, sem demora, acrescentar que qualquer ilegalidade que tenha sido cometida por outra nação ou que se esteja cometendo – Síria, Somália, Iêmen, Palestina – não libera o atual conflito armado russo-ucraniano de observar a lei internacional.
Até aqui, desde a distância metodológica que a teoria jurídica estabelece em relação à realidade, podemos confortavelmente vestir branco, adicionar um botton azul e amarelo aos nossos perfis nas redes sociais e passar para a aula seguinte, como se o direito internacional pudesse se encapsular e sair ileso.
Essa espécie de solipsismo da academia já foi assumido em outros tempos por renomados pensadores ocidentais. Lembremos que numa das primeiras experiências de exercício onusiano do direito da guerra, tanto Jürgen Habermas como Norberto Bobbio apoiaram abertamente a guerra do Golfo, considerando-a uma guerra justa, de legítima defesa contra Saddam Hussein e contra o Islam. Passadas cinco semanas de ininterruptos bombardeios dos Estados Unidos contra o Iraque na chamada operação “Tormenta do Deserto”, que prometia ser tecnologicamente limpa contra alvos meramente militares, Bobbio admitiu, que o conflito se parecia cada vez mais com uma guerra tradicional e que uma grande oportunidade histórica havia sido perdida: “as relações entre a organização internacional e a liderança militar se tornaram mais evanescentes, com a consequência de que o conflito atual parece cada vez mais uma guerra tradicional, exceto quanto à desproporção de força entre os dois combatentes (N. BOBBIO, Il terzo assente, Milán, 1989, pp. 115 ss. trad. livre). Em invasões posteriores, com ou sem a chancela da ONU ou da Europa, ambos os intelectuais preferiram o silêncio.
O que estamos vendo na Ucrânia é mais complexo do que a lógica interna da ONU pode supor. Mas não é preciso desgarrar da lei internacional para compreender a complexidade dos fatos e ajudar a pensar em saídas que vão além da Ucrânia e que retomam o verdadeiro espírito de não agressão previsto na Carta de San Francisco de 1946, de “manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos”(Preâmbulo da Carta das Nações Unidas assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional).
Sem abandonar o apelo à sensatez que está na base da construção da paz como abstenção do uso da força, o remédio contra o solipsismo do direito internacional exige assumir postura interessada em conhecer a história, as novas formas de violação do direito internacional, as tentativas “revisionistas” de interpretar o próprio direito internacional e principalmente o compromisso em afastar-se das aparentes e simplórias posições binárias.
O caso específico da guerra da Ucrânia exige: 1) considerar, para além dos interesses russos, também os dos Estados Unidos na Ucrânia, em especial quanto às reservas de gás e óleo da Eurásia e a relação com as reservas (e os correspondentes conflitos) no Oriente Médio e na África do Norte; 2) conhecer as estratégias da “revolução laranja” implementadas na Ucrânia pela International Research & Exchange Board (IREC-USAID) desde 2003 e, mais adiante, o envolvimento de empresários diplomatas, de políticos e de ONGs norte-americanas atuando explicitamente na Praça Maidan, em 2014, para precipitar o fim do governo de Viktor Yanukovych; 3) conhecer os meandros da transição do governo ucraniano concertada entre EEUU e líderes europeus e consolidada com forte participação de ativistas neofascistas do Svoboda, das milícias do SS Galitzia entre outros, e do banqueiro Arseniy “Yats” Yatsenyuk, presidente da OpenUkraine Foundation (associado à Chatam House, Cenro de Informação e Documentação da OTAN e ao banco suíço Horizon Capital) que assumiu o poder interinamente; 4) compreender o peso cultural e simbólico que significou, ato seguido ao arranjo eleitoral, o banimento do idioma russo como segunda língua oficial da Ucrânia quando dois terços da população tinham o russo como idioma nativo (especialmente nas regiões da Crimeia e do Donbass – Donetsk e Luhansk); 5) nesse contexto de sucessivos atos de desestabilização da Ucrânia, conhecer o desfecho do contragolpe de Putin com a reintegração da Crimeia à Rússia; 6) entender as consequências da intromissão da OTAN, das movimentações de tropas na Polônia e nos países bálticos, as ofertas de associar a Ucrânia e o desfile de navios da organização penetrando o Mar Negro (como alertou Gerhard Schröder, ex-chanceler alemão, a tentativa dos EEUU e da União Europeia de estabelecerem um tratado de associação da Ucrânia à OTAN ignorou a realidade de um país profundamente dividido culturalmente); 7) Conhecer os Acordos de Minsk I e II, celebrados entre Alemanha, França, Rússia e Ucrânia e, eventualmente, reconsiderá-los como saída para a guerra a partir do reconhecimento da diversidade pluriétnica da Ucrânia; 8) compreender que a guerra não começou agora, que faz parte de novos tipos de golpe de desestabilização, tal como ocorrem em outros países, e que desde 2014 produziu 14 mil mortes na região do Donbass.
Essas são apenas algumas das variáveis que ampliam as camadas de complexidade do conflito na Ucrânia. De modo algum justificam a deflagração militar da Rússia contra o país eslavo, mas explicam as razões históricas e cumulativas que devem ser compreendidas inclusive como fator para deslindar uma saída para a guerra em andamento.
Conhecer em profundidade o conflito também fornece subsídios para arrazoar um novo arranjo internacional que previna não apenas a guerra em si, mas novos tipos de ingerências, de desestabilização e de golpes de estado. No Brasil de 2016 nós vivemos algo muito parecido com a Ucrânia de 2014 e as consequências para a vida do povo brasileiro são equivalente a uma guerra de grandes proporções.
por Carol Proner, Doutora em Direito, professora da UFRJ, diretora do Instituo Joaquín Herrera Flores – IJHF | Texto em português do Brasil
Fonte: Brasil247