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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Revisitando “Nem Maginot nem Siegfried”

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Desde há algumas semanas que se multiplicam as referências à Segunda Guerra Mundial, algumas bem informadas, outras menos. Recordei-me a propósito de um artigo de Álvaro Cunhal, “Nem Maginot nem Siegfried” originalmente publicado em O Diabo(i), e recolhido pelas Edições Avante! no primeiro volume das suas Obras Escolhidas, em que Cunhal começa por afirmar:

Alguns joguetes da história dizem ter missões heróicas cá pela terra. Não os seduz a ideia de serem meras expressões de um mundo ou de um grupo. Pretendem, pelo contrário, que esse mundo ou esse grupo girem na órbita das suas realizações individuais. Cada qual não quer ver que aqueles que se opõem às suas missões heróicas afirmam, por sua vez, cumprir heróicas missões. Mas a razão parece sempre estar do lado de quem fala. Nenhum responsável foi suficientemente excêntrico para declarar combater por uma causa injusta.

Não pode haver uma justiça para todos os homens, porque hoje uns são para outros inimigos irredutíveis. Uns julgam os outros e a justiça do que julga não é a do que é julgado. Mas quando uns lutam contra os outros cada qual quer convencer e convencer-se de que a sua causa é a da justiça. Não admitem a sua justiça como relativa e contingente.”

Se não se conhecesse o contexto histórico da produção e publicação deste artigo poderíamos ver nele uma mera reafirmação das ideias que a corrente comunista geralmente minoritária no já forte movimento socialista no início da Primeira Guerra Mundial opôs à capitulação política da generalidade das direções que, desrespeitando o compromisso solene assumido em Basileia em 1912 acabaram por alinhar com os governos dos diversos países em guerra e apelar à guerra dos trabalhadores dos seus países contra os dos outros países.

No entanto o artigo, que zurze tanto Hitler como Daladier e Chamberlain e até o polaco Beck (o qual quando a Checoslováquia fora levada a ceder territórios à Alemanha abocanhou também uma parte), apoia implicitamente – e é essa a motivação da sua divulgação – o pacto de não – agressão, dito Pacto Molotov – Ribbentrop, celebrado entre a União Soviética e a Alemanha, que colocou diversos países e territórios da região e designadamente territórios ucranianos e bielorussos sob controlo polaco na esfera de influência soviética. Tratava-se para a União Soviética de recuperar territórios que se tinham estado antes de 1922 na dependência das suas repúblicas constitutivas, o que levantou algumas dúvidas a teóricos do movimento comunista mas mesmo Roy Medvedev que ao tempo da perestroika acabou por ter acesso a documentação oficial da época, terá considerado aceitável a primeira versão do Pacto embora não a segunda.

Não se creia contudo que a Polónia de 1939 sucumbiu a uma guerra em duas frentes. Raymond Cartier no seu livro La Seconde Gerre Mondiale retrata uma Polónia ingrata para com a França, que lhe dera fronteiras com uma população de 33 milhões de habitantes, com um terço de polacos à força, inconsciente das suas fragilidades, que esperava triunfar marchando sobre Berlim, e foi rapidamente esmagada no terreno, tendo o exército soviético ocupado os territórios de leste da Polónia que estavam na sua área de influência e passaram a integrar a Ucrânia e a Bielorússia.

De qualquer forma depois de 1935, em que o VII Congresso da Internacional Comunista apontara o nazismo e o fascismo como inimigos principais e incentivara a formação de Frentes Populares – Cunhal terá participado no Congresso da Internacional juvenil- a aparente mudança de orientação terá lançado a perturbação nos diversos países envolvidos ou não na Guerra. É útil ter em conta a História do PCP: das origens ao 25 de Abril (1961-1974) de João Madeira, publicado em 2013 e Intelectuais, Utopia e Comunismo- A Inscrição do Marxismo na Cultura Portuguesa, de Luis Andrade, publicado em 2010, livros que têm ambos na origem teses de doutoramento.(ii)

Enfim, num país que teve simultaneamente a experiência de um governo baseado politicamente numa frente popular e a experiência de ser derrotado e ocupado militarmente pela Alemanha – a França – é útil consultar para além da obra de Raymond Cartier um texto de François Furet(iii) que mostra ter havido alinhamento entre as posições de apoio ao Governo da Frente Popular saído das eleições de 1936 e a o apoio a uma política externa anti-hitleriana, votando o PCF os créditos da defesa e criticando as cedências de Munique. Assinado o pacto de não agressão, o PCF é ilegalizado mas depois de ocupada a França mas é a própria Internacional Comunista a proibir uma tentativa de regresso à legalidade através de um talvez possível mas politicamente indesejável entendimento com as autoridades ocupantes, O centralismo democrático em acção, aliás Furet dá notícia de quando da assinatura do pacto de não agressão, José Estaline, Secretário-Geral do PCUS terá pedido uma reunião com Jorge Dimitrov, Secretário Geral da Internacional.

A complexidade da luta política e da condução das guerras não podia já no contexto da II Guerra Mundial ser conjurada com um “Nem Nem.”, aliás com a invasão da União Soviética em 1941 pareceu mais fácil delinear políticas de alianças, bem ou mal adaptadas às condições nacionais . A política de alianças do Rumo à Vitória no Congresso de 1965 (em Kiev!) – favoreceu no essencial, parece-me pacífico a realização da Revolução de Abril.

Descontando alguns casos em que, nos momentos subsequentes o “Nem, Nem” surgia como demarcação em relação a opções que até não estavam em cima da mesa (exemplo “Nem Nato, nem Pacto de Varsóvia”) não me lembro de questões que apelassem a um combate com dois grandes adversários.

Contudo nas últimas semanas a propósito da “acção militar especial” desencadeada pela Federação Russa em terras da Ucrânia, vem surgindo a ideia de que há vários imperialismos a combater– parece-me ser a tese que Fernando Rosas defendeu publicamente num evento do BE – e certamente é a tese que o KKE – Partido Comunista da Grécia vem defendendo, organizando simultaneamente manifestações junto da Embaixada Russa e da Embaixada Americana em Atenas e na base da qual vem reunindo um número apreciável de assinaturas de apoio de organizações congériesf de outros países.

Prefiro enquadrar a análise desta situação na existência de nacionalismos conflituantes como fiz no artigo As Catalunhas da Europa, publicado no Jornal Tornado no início da minha colaboração, e tentarei fazer isso em futuros artigos.

 

Notas

(i) Em 9 de Março de 1940. Nas Obras Escolhidas, I vol. pp. 75-77.

(ii) Tanto na obra mencionada como na tese de doutoramento em que esta se baseou, como ainda numa anterior – Os Engenheiros de Almas (tese de mestrado) João Madeira afirma serem Maginot e Siegfried nomes de campos ou linhas de batalha da Primeira Guerra Mundial. Ora o próprio artigo de Álvaro Cunhal mostra serem linhas de fortificações construídas nos anos 1930, com a motivação de economizar efectivos e de reduzir o número de baixas. Como a Linha Maginot (do nome de um ministro francês da Guerra) nem sequer foi investida de frente os seus fortes foram entregues depois do armistício de 1940 ter determinado a sua rendição.

(iii) Le Passé d’une illusion. Essai sur l’idée communiste au xxe siècle 1995. Tem tradução portuguesa.

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