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Terça-feira, Julho 16, 2024

A vida e o mar de histórias

Marina Bueno Cardoso
Marina Bueno Cardoso
Marina Bueno Cardoso é jornalista e escritora brasileira, de São Paulo. Publicou os livros de crônicas “Petit-Fours na Cracolândia”(Editora Patuá) e “Descansar do Mundo” (Editora Penalux). Durante cinco anos ministrou a oficina multimídia “Ler é Viver” para Educação de Jovens e Adultos” e para a ONG Instituto Prof., na comunidade de Paraisópolis. Também é responsável pelas oficinas de crônicas “Coisas da Vida” no SESC/SP do interior do estado e em São Paulo

Enquanto Domingos conversava comigo, contando que estava com 34 anos e retomou os estudos graças à Educação para Jovens e Adultos (EJA), na Escola Lourenço Castanho, lembrei-me do texto de Rubem Braga, “Mar”, que trouxe para os alunos lerem, no qual dizia: “Na primeira vez que vi o mar eu não estava sozinho. Estava num bando enorme de meninos”. Assim foi também para Domingos, que aprendeu a nadar no rio em Araioses, leste de Maranhão, bem na divisa com Parnaíba, no Piauí. Ele contou que o nome esquisito desta cidade vem dos extintos índios Arayos e que a região onde viveu 21 anos é conhecida como “Portal do Delta”. Antes havia perguntado se tinham gostado do texto, que descrevia a primeira vez que o autor via o mar e como ele atravessou todas as fazes de sua vida. Adoraram.  Daí, por curiosidade, numa classe com 18 alunos, perguntei quem conhecia o mar e – como a maioria era migrante do interior dos estados do norte e nordeste – apenas 4 tinham visto o mar.

Domingos aprendeu a nadar em rio para ir logo para o mar. Ainda menino, havia perdido o pai. De uma família original de 13 filhos, sendo que cinco morreram crianças, não era todos os dias que iam para a escola, mas sim ajudar na pesca e, em junho, na colheita do arroz. Sua mãe ia junto com ele, o padrinho e um irmão, nas duas funções. Tinha que colocar comida na mesa, e eram muitas bocas, e comprar alguma roupa, quando dava.

“Fomos ao mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito: o mar! Era qualquer coisa de largo, de inesperado.”

Foi com 21 anos que veio para São Paulo, numa viagem de ônibus que levou três dias. Veio para encontrar o irmão Francisco, na busca por uma vida com um horizonte mais amplo. A irmã mais velha, Iraci, havia se formado em Magistério, estudou Pedagogia e deu aulas para EJA. Seu outro irmão, José, o primeiro da escadinha, há anos era já mestre de obras, na Construtora Queiróz Galvão, em Manaus, e mandava dinheiro para a mãe. Domingos chegou na cidade grande sem muita instrução, pois havia cursado apenas até a 7ª série.

“Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar”.

Tal qual as ondas de Braga, Domingos passou por situações limite, tentando trabalhar como peão numa obra, até que surgiu a oportunidade de ser entregador do China in Box. Durante um ano foi pedalando, até que veio a ideia de comprar junto com o irmão uma moto usada. Foi bom, conhecia toda a Vila Mariana e região, ficou na atividade dois anos e meio. Pensou em ser segurança, para ganhar mais, quando apareceu uma vaga no Joaquin’s Restaurante: valeu! Registro CLT, plano de saúde, fixo+taxa de entrega e depois aluguel da moto e vale combustível. Ficou faltando pouco para completar 19 anos registrado.

“Um rapaz de quatorze ou quinze anos que nas noites de lua cheia, quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente…”

Ele casou com Jocilene, que trouxe Tauã, depois vieram Pedro, Arthur e Matheus. Comprou uma casa, não era lá tão boa para a família, vendeu e comprou outra no Jabaquara. Enquanto batalhava aqui, sua mãe, aos 60 anos, voltou para a escola, na EJA de Araioses. Foi o que bastou, o exemplo da mãe, para também voltar a estudar, claro, na EJA. Já lia bastante, pegava livro no lixo, às vezes ganhava de cliente, assim foi apresentado a Jorge Amado, com “Capitães de Areia”, à leitura de jornais, cordel, que gostava, “O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiróz e outros tantos. Adorou voltar para a escola, ter colegas que, como ele, queriam crescer, trocar ideias, fazer o Enem e prestar um bom curso técnico.

“A primeira vez que saí sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulho de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação”.

Foi um aluno que chamava a atenção pela assiduidade e acrescentava interesse por tudo o que aprendia. Dava para notar que estudava e se preocupava em aprender mais e mais.  E um dia perguntei: Que horas você arruma para estudar?  – Olha professora, eu entro para trabalhar às 11h da manhã e vou até às17h30 para vir para cá das 18h30 às 21h30. Depois volto para o trabalho e vou até o último cliente. Mas duas vezes por semana, da escola vou direto para casa, fico com a família, que já está indo dormir, e estudo até 3h, 4h da manhã. No fim de semana é hora de ver a lição da casa da garotada, e eu falo para eles que tem que estudar se não vai ter que remar dobrado mais velho e não vai chegar a lugar nenhum.

Lembro do dia em que fui com a escola conhecer o Teatro Municipal, assistir um concerto, ele me contou. Uma beleza e quando você sai à noite é uma tristeza, gente dormindo no chão, comendo resto. Comecei a ver que eu tinha que entender aquele mundo, olhar fora da caixinha, tinha que refletir e questionar o que escreviam nos jornais.

“Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar dos pobres pescadores maratimbas…e o mar do mangue”.

Fui insistente, pois teimei que ia conseguir e lá fui eu, fiz cinco vezes o ENEM, até passar. Era bom em humanas, mas matemática era meu calo. Até que foi. Daí fui fazer curso Técnico de Segurança no Trabalho, no SENAC, e das 40 vagas ficamos em 16 no final. De lá para cá, aos 44 anos, comecei do zero, primeiro fazendo reformas, com uma equipe de funcionários liderados por mim.  Estava indo razoável, pegando trabalho, até o dia em que estava num telhado e o Professor Matheus Naves, da EJA, me ligou, dizendo que tinha um emprego para mim, e era numa multinacional, na ERM, empresa de consultoria em meio ambiente, que faz análise de água, solo e ar.

“Mar diário e enorme, ocupando toda a vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força de sacrifício sem finalidade de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso mar fabricando um homem.”

Nunca tinha sido usuário de informática, desde um simples e-mail era algo novo. Agora tenho aulas de inglês e enquanto não domino o idioma o tradutor do Google me salva. Ah…e continuo estudando à noite, afinal, para ser técnico de campo precisa conhecer muita coisa que para mim era novidade. Agora já estou me situando bem. Ah, se estes políticos investissem em educação! Quem não tem educação vive em uma prisão sem muros! Não tem autocrítica para se questionar e questionar o mundo. Ninguém tem que ralar como eu ralei para chegar onde estou, que é um desafio e tanto, se tem educação.

“Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo…Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam – um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar…”

Sim, a vida de Domingos acompanhou o mar, com suas distintas marés. A primeira vez que navegou sozinho, as grandes ondas… Neste fluxo construiu uma vida bela – tão bela quanto o primeiro encontro de Rubem Braga com o mar – e na maturidade revê todo seu trajeto, com orgulho merecido.


Texto em português do Brasil

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