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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

Nosferatu: 100 anos de uma das obras-primas mais influentes do cinema

Esse ano marca o aniversário de 100 anos da estreia do filme mudo de horror do Expressionismo Alemão, Nosferatu. A adaptação não-autorizada e não-oficial do romance de Bram Stoker de 1897, Drácula, foi considerada uma das obras-primas mais influentes do cinema mudo. Assistindo o filme de 80 minutos um século depois, fica claro que sua relevância vai além de tecnicalidades. Os temas no filme, como política, pragas, xenofobia e repressão sexual ainda tocam um acorde pesado em nossa realidade. Não deixe a idade te enganar, esse filme ainda tem uma mordida relevante.

Dirigido por F. W. Murnau, e com roteiro de Henrik Galeen, a história acontece na cidade ficcional alemã de Wisborg, em 1838. Thomas Hutter (Gustav von Wangenheim) é mandado para a Transilvânia por seu empregador, o corretor de imóveis Herr Knock (Alexander Granach), para visitar um novo cliente, chamado Conde Orlok (Max Schreck), que planeja construir uma casa em frente da própria casa de Hutter. Surge o perigo quando Thomas percebe que algo está muito errado com o Conde Orlok. Ainda, essa percepção pode ter chegado muito tarde, quando Orlok faz o seu caminho para Wisborg, trazendo uma praga mortal com ele. A única esperança parece estar com a esposa de Thomas, Ellen (Greta Schröder), que percebe que ela pode ter que fazer o sacrifício final para salvar sua cidade.

Eu tenho uma confissão. Esse ano eu percebi, ao sentar para assistir ao filme pelo seu centésimo aniversário, que na verdade eu nunca o tinha visto em sua totalidade. É claro, eu compartilhei e vi muitos gifs e memes de internet representando cenas de Nosferatu ao longo dos anos, mas sentar para experimentar o filme inteiro não tinha ocorrido até esse mês. E eu vou admitir que se houve qualquer ano que vale a pena assisti-lo, seria no tumultuoso tempo de 2022.

É um filme que te assombra por uma variedade de razões. A pontuação da música e a direção te mantém encantado com cada cena. Nenhum diálogo é ouvido, mas cada momento é sentido. Mesmo em um mundo de criaturas GCI modernizadas, o clássico olhar de vampiro do Conde Orlok ainda tem um peso assustador. Música e sombra criam uma atmosfera que é tão sedutora quanto o folclore dos vampiros que o filme procura detalhar. Tudo isso é verdade, mas o que faz esse filme selar o acordo, e ir para a jugular, (como os vampiros são conhecidos por fazer), são os temas subjacentes que espreitam em todas as sombras do horror que ele apresenta.

O Conde Orlok não é o sedutor convencionalmente bonito que nós viemos a saber que Drácula é. Ainda assim, ele é uma representação de sexualidade e desejo. Alguém poderia argumentar que o fazendo algo que é tanto fascinante quanto aparentemente repulsivo de se ver, ele se tornou um símbolo para os desejos reprimidos das pessoas naquela época. Ele é o tabu sedutor, e nas sombras está onde ele encontra suas vítimas. Seus estremecimentos, medo e inevitável rendição jogam nas coisas que os humanos podem ter sentido a necessidade de fazer em segredo por medo disso ser revelado na luz – particularmente quando se trata de duas questões frequentemente desaprovadas durante essa época. Isso sendo a expressão sexual das mulheres e o homoerotismo.

Há uma cena onde Thomas acidentalmente corta seu dedo enquanto janta com Orlok. O Conde suga o dedo do jovem homem. Thomas recua, pego de surpresa pelo comportamento de Orlok. Enquanto ele se afasta, Orlok pede para estar em sua companhia por mais tempo. Apesar de seu óbvio medo, Thomas cede e senta com o vampiro. Ele cai no sono, acordando com marcas de presas no seu pescoço, que ele rapidamente descarta como picadas de mosquito. É uma cena breve, mas impressionante. Um ponto é feito, que Orlok faz o gesto íntimo de sugar o pescoço tanto de mulheres como de homens.

Essa alusão a intimidade do mesmo sexo não é estranha a histórias de vampiros. Carmilla, o romance gótico de 1872 da autora irlandesa Sheridan Le Fanu, é uma das primeiras obras de ficção vampírica. Ele saiu quase 25 anos antes do Drácula de Stoker. Carmilla tratava-se de uma vampira que atacava mulheres. O perigo nessa história derivava-se de mulheres vítimas sendo seduzidas pela beleza e poder de Carmilla. A Condessa representava o proibido e a excitação que ela provocava em sua presa.

Erotismo como esse se desenrola em Nosferatu também. Isso deve ser visto como inovador, dado que figuras famosas como o poeta irlandês Oscar Wilde foram julgadas (e condenadas) por homossexualidade nem trinta anos antes. Também deve se notar que foi dito sobre o diretor Murnau ser gay.

Murnau desvia do romance de Stoker fazendo que o verdadeiro herói seja, no fim, Ellen. Mesmo desde o início do filme, ela está mais consciente do perigo do que seu desatento marido. Por todo Nosferatu, homens abastados tentam descobrir o que assola os habitantes da cidade, mas cada vez eles chegam a conclusões vazias. É Ellen, muitas vezes dispensada e mimada, que descobre o verdadeiro remédio para livrar a cidade de Orlok. Ela tem que assumir o fardo sobre si mesma e faz o sacrifício final de bom grado.

Isso é um afastamento do Drácula de Stoker, onde a principal protagonista feminina, Mina, involuntariamente é vítima da mordida do vampiro. Na história de Stoker, a esperança é encontrada depois que Mina dá à luz a seu filho. Mina se torna importante por seu papel de gênero de procriação. Em Nosferatu, Murnau subverte isso, fazendo Ellen a heroína unicamente por sua coragem e compreensão.

Agora, eu seria negligente em não mencionar o debate sobre conotações antissemitas no filme. Houve críticas que teorizaram que o longo nariz adunco de Orlok, compra de imóveis, e outros recursos exagerados jogam em caricaturas associadas às pessoas judias durante aquela época. Alguns argumentam que Orlok trazendo ratos com ele nos caixões, assim trazendo a praga, é representativo do preconceito antissemita crescendo naquela época, que os judeus eram como ratos pessoas responsáveis pelo sofrimento dos “verdadeiros” alemães.

Eu acho que nós estaríamos fazendo um desserviço ao filme em colocar isso em um quadro tão preto e branco. Nosferatu foi produzido na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, pré-Segunda Guerra Mundial. O Partido Nazista de Adolf Hitler chegaria ao poder total 11 anos mais tarde, em 1933. Enquanto há temas de alteridade no filme, eu argumentaria que isso pode ser visto como uma crítica da retórica antissemita crescendo na Alemanha naquela época.

Isso se torna evidente no Ato Cinco do filme, quando é dito claramente que o povo doente e cansado procura um bode expiatório para seu sofrimento. Eles encontram isso no corretor de imóveis Herr Knock (interpretado pelo ator judeu Alexander Granach). A multidão enfurecida vai atrás de seu personagem, embora ele não seja a fonte de sua dor. Ele também é uma vítima de Orlok, infelizmente, colocado sob seu feitiço para ser seu servo. Isso não importa às pessoas de Wisborg. Isso pode ser visto como um paralelo a retórica do bode expiatório que o Partido Nazista usou contra judeus, homossexuais, afro-alemães e oponentes políticos.

O ator principal, Wangenheim, tinha sido um membro do Partido Comunista da Alemanha desde 1921. Ele mais tarde fugiria da Alemanha nazista nos anos de 1930 e se refugiaria na União Soviética. Granach também mais tarde fugiria da Alemanha por causa do regime nazista e do antissemitismo.

Toda essa história e mais está presente em um filme mudo do início dos anos de 1920! É uma coisa fascinante, mas ainda mais fascinante é quão relevante isso é ao nosso mundo atual.

Um século mais tarde, e nós ainda temos governos e aqueles no poder que recusam a autonomia das mulheres e os direitos sobre os seus próprios corpos. Agora mesmo nos Estados Unidos, há um esforço concertado pela direita para voltar as mãos do tempo no direito de uma mulher de escolher ter um aborto. A ideia de uma mulher procurando gratificação sexual sem o peso do parto é um ideal que, mesmo em 2022, homens poderosos não podem imaginar. Ninguém ouve as Ellens do mundo, e assim elas são forçadas a gerenciar e sacrificar por conta própria.

Sem mencionar que agora há atualmente um esforço para criminalizar a discussão da existência gay e transgênero nas escolas. Legislações vagas e perigosas como o projeto de lei Direito dos Pais na Educação, (também conhecido como projeto de lei “Não Diga Gay”), já foi aprovado tanto pelo Senado quanto pela Câmara da Florida no momento da redação desse artigo. Esse projeto de lei limita o que salas de aula podem ensinar sobre orientação sexual e identidade de gênero. Essencialmente, ele condena a discussão da sexualidade de volta às sombras da época de Nosferatu.

Nosferatu, sendo um filme Expressionista, seria mais tarde condenado como “arte degenerada” pelo regime nazista. Em 1937, o conceito de degeneração estava firmemente enraizado na retórica e política nazista. Aqueles identificados como artistas degenerados foram sujeitos a sanções que incluíam ser demitidos de cargos de ensino, ser proibidos de vender sua arte e, em alguns casos, ser proibidos de produzir seu trabalho. Essa ideia de censura de arte e expressão não é nova e, infelizmente, não é uma relíquia inofensiva de nosso passado.

As guerras culturais acontecem hoje, à medida que os livros que descrevem a experiência de pessoas de cor, LGBTQ, e outros grupos marginalizados estão sendo banidos das bibliotecas escolares e salas de aula. Literais queimas públicas de livros estão de volta em “grande estilo”, sob o pretexto de proteger a juventude (branca). Assim como os nazistas defendiam que a “arte degenerada” era um “insulto ao sentimento alemão”.

O horror em Nosferatu sangra fora do quadro em nossa própria realidade. É um pesadelo fascinante, que nos assombra no tempo presente. Feliz aniversário ao filme de vampiro que ajudou a começar tudo isso.

O olhar ameaçador de Orlok é apenas um símbolo para as questões com as quais nós verdadeiramente ainda temos que lidar das sombras. Uma verdadeira história de terror.


por Chauncey K. Robinson, jornalista e crítica de cinema (People’s World) | Texto em português do Brasil, com tradução de Luciana Cristina Ruy

Exclusivo Editorial Rádio Peão Brasil / Tornado

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