E é neste novo contexto que interessa discutir hoje a liberdade. Se bem que seja útil e necessário preservar a memória, não se pode substituir o necessário debate presente sobre a liberdade pelo que ele tem de histórico no 25 de Abril, como por exemplo, saber se se deve condecorar Spínola ou Otelo. Só por mentalidade totalitária se pode querer apagar qualquer deles de acontecimentos em que foram personagens cruciais, e discutir o legado de qualquer deles, sendo importante, não pode servir para esquecer o que significa a liberdade hoje que está para além do que eles nos legaram.
-
A Europa trazida por Mário Soares
A 25 de Abril de 1974 estava eu no Colégio Militar e segui atentamente os acontecimentos via rádio, sendo que durante o dia lembro-me especialmente da recepção apoteótica que foi prestada ao General Spínola que veio ao Colégio, de que era ex-aluno, para celebrar o evento connosco.
Antes do 25 de Abril acompanhava fascinado a propaganda revolucionária facilitada pelos meus irmãos mais velhos, e sentia-me empenhado, por razões que eram emocionais, num espírito revolucionário que prossegui na que foi a mais radical das organizações desse tempo, o MRPP, o que não obstava a que – de forma assaz incoerente – eu visse na Europa, na França, Bélgica e Alemanha que já conhecia e em especial na Escandinávia que conheci a seguir, o modelo político que me parecia necessário adoptar em Portugal.
Não tendo estado em Santa Apolónia na chegada de Mário Soares, e nem me tendo apercebido no Primeiro de Maio de 1974 da tensão que já então despontava entre o PS e o PCP, a verdade é que senti uma empatia total por ele desde que o vi nos écrans da televisão, e que ele sempre foi para mim quem trouxe a Europa e a liberdade com ele quando desembarcou em Santa Apolónia, e que esse é o 25 de Abril que mais me diz.
Soares, Europa e liberdade eram para mim termos que se equivaliam e que constituíram as referências mais importantes, e continuaram a sê-lo quando me dediquei a conhecer o projecto original europeu inspirado pelo atlantismo de Jean Monnet e pelo espírito transfronteiriço e, portanto, literalmente supranacional, de Robert Schuman, que convergiram com o socialismo democrático de que Soares foi o fundador entre nós, sem confundir-se com ele.
Voltarei ao tema da Europa das origens na edição do Tornado de 9 de maio, o dia da Europa, a partir de uma conversa que mantive há dias com quem será provavelmente o seu único testemunho vivo, o então jovem jornalista Paul Collowald, que vai em junho celebrar os seus noventa e nove anos.
Por agora, interessa frisar que para de Gaulle, Monet era o ‘apátrida’, e para o gaullismo de esquerda dos nossos dias, Monet era mesmo um vende-pátrias, como lhe chamou recentemente Michel Onfray a propósito da sua declaração de governo de unidade com o Reino Unido, com a qual ele tentou parar a declaração de rendição de Pétain.
Para o neogaullismo de Le Pen ou de Onfray, trata-se mesmo de um polvo globalista que tem na União Europeia um dos tentáculos, mas nas instituições das Nações Unidas e na finança de Soros e outros, a sua parte mais importante.
-
O velho debate patriotismo-nacionalismo
Li nas redes sociais que o novo Presidente da Assembleia da República de Portugal resolveu dedicar o seu discurso inaugural à dicotomia patriotismo – nacionalismo que dominou o debate eleitoral presidencial francês há cinco anos atrás (ver, por exemplo, este resumo do discurso de Macron de 2017).
Figura de quase pura retórica, com base etimológica assaz discutível, essa dicotomia já desapareceu do debate político francês por uma razão simples, aquilo que era a essência criticada do nacionalismo, a hipervalorização da soberania, ganhou o debate e deixou de ser reivindicada apenas pela direita, justamente chamada de soberanista, que se tornou primeiro conhecida pela voz de Nicolas Dupont-Aignan, em 2007.
Basta ver como o mesmo Macron, que fez dessa velha dicotomia o ponto central da sua campanha em 2017, tomou para si a ‘soberania’, (embora ‘europeia’, soberania!), desta vez, à imagem do que aliás fizeram quase todos os candidatos, da extrema-esquerda à extrema-direita.
A resistência ao que se percepciona como globalismo é hoje assumida como soberania e tornou-se dominante em França. Os seus ecos irão chegar, com o atraso do costume, às nossas paragens.
E é neste novo contexto que interessa discutir hoje a liberdade. Se bem que seja útil e necessário preservar a memória, não se pode substituir o necessário debate presente sobre a liberdade pelo que ele tem de histórico no 25 de Abril, como por exemplo, saber se se deve condecorar Spínola ou Otelo. Só por mentalidade totalitária se pode querer apagar qualquer deles de acontecimentos em que foram personagens cruciais, e discutir o legado de qualquer deles, sendo importante, não pode servir para esquecer o que significa a liberdade hoje que está para além do que eles nos legaram.
A Europa institucional continua a ser um espaço de liberdade, e com ela Portugal que, entretanto, aí plenamente se integrou. Posto isto, tenho hoje uma visão bastante menos entusiástica da realidade institucional europeia, em parte por que a conheço melhor, em parte pela sua dinâmica que a tornou algo de substancialmente diverso do que começou por ser.
Já há muito que tinha sentido esse resvalar do projecto para essa soberania europeu assumido agora por Macron, que é o declarar a rendição no debate substantivo e agarrar na variável intrinsecamente chauvinista da dimensão, que deve ser maior para fazer face aos EUA, à Rússia ou à China.
-
Soberania e globalização
A única forma de quebrar com o impasse em que nos encontramos é a de redefinir o debate. Apresentar a resistência à globalização como programa político é ignorar uma realidade que transcende a vontade de quem quer que seja e serve apenas como refrão político conservador, independentemente das cores com que seja pintado.
O debate tem de ser antes o de saber como fazer com que a globalização não seja invocada para uma governação de cima para baixo e, portanto, alheia à vontade dos povos, e cerceando a sua liberdade de escolha, aprendendo a navegá-la democraticamente. É um debate que passa pela Europa – nosso local mais imediato de integração – mas que largamente a transcende.
A soberania é uma noção que implica domínio supremo, e etimologicamente parece-me mesmo a menos indicada na tríade ‘nação, pátria e soberania’, que eu escolheria por esta ordem.
A ‘soberania limitada’ é uma expressão que ficou historicamente ligada ao imperialismo soviético quando primeiro foi invocada na invasão da Checoslováquia e que perdura hoje na invasão da Ucrânia, mas a ideia essencial que temos de reter é que, na moderna arquitectura constitucional, todo o poder, toda a soberania, deve ter limites ou, se quisermos, para afastar a conotação imperial soviética, fronteiras.
Há lugar para diversas esferas de competência, locais, regionais, nacionais, transnacionais, internacionais ou mundiais, e em cada esfera há igualmente lugar para a divisão de poderes numa definição que nunca será imune a conflitos, mas que não tem de assumir a passagem de tanques pelas fronteiras. O encontro do lugar de cada um com respeito pelo lugar dos outros é um processo complexo que não pode ser feito ao ritmo de slogans redutores e conceitos maximalistas.
Aquilo que é fundamental é não ser armadilhado por quem em nome de um conceito ilimitado, seja o de soberania, pátria ou nação, mas pode ser também o da Europa ou da comunidade internacional, promova uma agenda fanática de desrespeito por valores e pessoas, e defender antes valores e acções que estimamos louváveis em função do ser humano em qualquer das esferas em que nos movemos.