O putinismo é o estalinismo recauchutado, mas o estalinismo é ele mesmo uma versão particularmente brutal do czarismo, tão bem analisado por Marx ou Eça.
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A normalização da barbárie
À guisa de justificação sobre a barbárie imperial com que a ditadura russa se abate sobre a Ucrânia, o chefe da diplomacia russa, numa entrevista à TF1, lembrou-se de explicar que a Rússia não faz mais na Ucrânia do que o que faria a França ou a Inglaterra se a Bélgica ou a Irlanda proibissem a língua francesa ou inglesa nos seus países.
Qualquer coisa em termos levemente parecidos com isso proferida por qualquer dirigente político europeu teria dado direito certamente a mais do que um conflito diplomático, mas na Europa de hoje, apesar da incomodidade (veja-se aqui a reacção do principal jornal belga de expressão francesa, e aqui o desmentido da proibição linguística, como se alguma vez essa questão fosse relevante nesse contexto), isto parece ter entrado na normalidade.
A França de Macron tem rivalizado com o que foi a Alemanha de Merkel na liderança do clube de apaziguadores que querem à viva força normalizar a selvajaria putinista, convergindo assim com os associados e apologistas, para lhe entregar a Ucrânia, precisando para isso de normalizar o que de todo em todo não é normalizável.
Macron – justa e apropriadamente alcunhado na imprensa francesa de ‘Rei Camaleão’ – é apesar de tudo o mais moderado do espectro político francês na lógica de apaziguamento, tendo de resto o mesmo sido verdade com o longo consulado de Merkel, pelo que em vão correremos atrás de qualquer deles para encontrar explicações para o que se passa na Europa.
Reconfortados pelo voltar dos principais dirigentes europeus ao discurso pré 24 de fevereiro, os associados e apologistas do putinismo voltaram em força nos últimos dias à tradicional tentativa de dividir a OTAN – essencial para que a Rússia prossiga a sua expansão imperial – dizendo que a Europa tem de se emancipar dos ‘ditames de Washington’.
A ironia da questão está em que, como tenho escrito aqui no Tornado, penso que parte do incentivo dado à invasão partiu da lógica de apaziguamento e de cedência americanas, que se evidenciou com a entrega de Cabul aos Taliban. A esse propósito, o velho Henry Kissinger – símbolo de tudo o que de pior passou pela diplomacia americana nas últimas décadas – disse em voz alta em Davos o que grande parte da máquina americana (‘Deep State’) pensa em voz baixa.
Uma das razões que me convenceram nos dias que antecederam a invasão de que as autoridades americanas estavam dispostas a ceder a Putin, foi a anunciada resignação antecipada do actual Secretário Geral da OTAN, resignação que viria a ser retirada já depois da invasão.
Uma decisão dessa importância na véspera da invasão da Ucrânia – que o Presidente norte-americano não se cansou de proclamar publicamente que ia necessariamente acontecer – ou foi da iniciativa ou no mínimo contou com a aquiescência dos EUA. Foi Zelensky, ao recusar ‘apanhar a boleia’ e ao pedir ‘armas para resistir’, bem como a resistência ucraniana à invasão, que mudaram o curso dos acontecimentos.
A propósito da invasão russa, o secretário-geral da OTAN, que assim continuou a ser o norueguês Stoltenberg, proferiu um dos mais interessantes discursos feitos em Davos, apelando aos dirigentes ocidentais para deixar de pensar apenas em dinheiro: ‘A proteção dos nossos valores é mais importante do que o lucro!’. Stoltenberg equacionou aqui a questão que me parece decisiva para o Ocidente nesta batalha para fazer face à tirania, e causou insuspeitos incómodos entre os dirigentes políticos ocidentais.
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Marx
Para o bem e para o mal, no entanto, é o nome de Marx, e não o de Stoltenberg, que nos vem à cabeça quando pensamos nos malefícios da obsessão com o lucro.
Alvitrei o ano passado ser o ‘Marx historiador e intérprete de Aristóteles’ mais importante do que o ‘Marx revolucionário’, mas concedo que se poderá eventualmente dizer o mesmo do ‘Marx jornalista’, como o afirmou James Ledbetter, editor da colaboração de Marx no New York Tribune, numa entrevista ao Jacobin.
Marx foi correspondente europeu do New York Tribune de 1852 a 1862 – à época, como sublinha Ledbetter, o jornal de maior expansão do mundo – e foi essa a sua principal actividade profissional nesse período. Ela só viria a ser interrompida quando Marx se recusou a seguir a linha editorial do jornal em 1863, que era favorável ao fim da guerra civil através da aceitação da continuação da escravatura no Sul. De resto, o único elogio público conhecido redigido por Marx a um personagem de Estado é o de uma carta de felicitações ao Presidente Abraham Lincoln pela sua vitória na guerra civil americana em 1864.
A esse propósito, Ledbetter, que repertoriou quase quinhentos artigos de Marx, nota que provavelmente a esmagadora maioria dos seus leitores ignorava que o Marx correspondente do New York Tribune tinha sido também o autor do Manifesto do Partido Comunista, dado que a primeira versão autorizada em inglês do manifesto data de 1888, cinco anos após a morte do seu principal autor.
Como muitos outros, Ledbetter infere que Marx tinha uma posição geralmente pró-americana, mas não aborda nesta entrevista o quão crítico é igualmente o autor da Rússia, algo que se torna claro após uma leitura do que Marx, por vezes em parceria com Engels, escreveu nesse jornal sobre a ‘Guerra da Crimeia’, em 1853, e que foi publicado e editado de novo em 1953, sob o título esclarecedor de ‘A ameaça da Rússia à Europa’.
A republicação dos textos de Marx em 1953 sobre a ameaça russa compreende-se naturalmente pela celebração do seu centenário, mas igualmente pela renovada ameaça imperial russa sobre a Europa vivida nesse momento, e de como o severo julgamento de Marx sobre o impenitente imperialismo russo e fragilidade da resistência europeia se continuavam a aplicar um século depois. A republicação do texto em 2022 justificar-se-ia inteiramente pelo segundo motivo.
A mensagem do autor que mais terá feito para alertar para o perigo que o imperialismo russo significava para a democracia e a revolução na Europa foi posta de pernas para o ar por Lenine no ‘Imperialismo, estádio supremo do capitalismo’. Nesse famoso panfleto, e apoiando-se em várias obras publicadas no século XX, Lenine defendeu que a revolução iria partir do ‘elo mais fraco da cadeia’ (a Rússia) e não dos países mais avançados, que seriam eles, e não a Rússia, os verdadeiros imperialistas.
É nesta base que chegou aos nossos dias a noção de uma Rússia que em vez de ser o epígono do imperialismo, seria antes a ‘vanguarda do anti-imperialismo’, verdadeira charada linguística que, mesmo quando Putin prescinde do folclore revolucionário leninista (pouco permanece, para além do PZP) teima em não se dissipar.
Curiosamente, mesmo antes de Lenine ter conseguido apropriar-se, e em pontos cruciais como este do Imperialismo russo, na verdade, inverter, o legado de Marx, existiram outras tentativas russas – eslavófilas, como lhes chamou Marx – para distorcer o seu discurso e a sua leitura do progresso, entre outras, a do Otecestvenniye Zapisky (jornal russo traduzido aqui por ‘Notas sobre a Pátria’) em resposta ao qual, em 1877, Marx nega que da sua doutrina, tal como expressa no capítulo sobre a acumulação primitiva do Capital se possa ver um ‘passaporte universal de uma teoria histórico-filosófica geral, a virtude suprema da qual consistiria em ser supra-histórica’ aplicável à Rússia.
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Eça
A guerra russo-turca da Crimeia, terminada em 1856, reacendeu-se duas décadas depois, em 1877, sendo abundantemente referida na correspondência entre Marx e Engels, publicando este último na imprensa britânica sobre o assunto.
Eça de Queiroz, romancista e diplomata, dedicou-se também ao jornalismo, nomeadamente em crónicas publicadas em ‘A Actualidade’ (Porto) e ‘Gazeta de Notícias’ (Rio de Janeiro) que viriam a ser reunidas em livro ‘Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres’ (de que há várias edições, e de que eu estou a usar a que é da responsabilidade de Helena Cidade Moura na ‘Livros do Brasil’). Tendo sido diplomata a maior parte da sua vida profissional, ocupou dois postos consulares na Inglaterra na maior parte dessa carreira profissional (Newcastle e Bristol) incluindo o período entre 1877 e 1882 a que se refere esta recolha de publicações.
As crónicas são esparsas em referências específicas às áreas em que exerceu essa actividade consular, e abundantes nas referências a Londres (as cartas de Londres, como o nome indica, são escritas desta cidade).
Não conheço qualquer razão que nos leve a pensar que Eça e Marx se tenham conhecido em Londres, onde este último teve morada depois de 1850, mas é digna de nota a semelhança de pontos de vista de ambos sobre a ameaça do Imperialismo russo sobre a Europa.
A título de exemplo, citando aqui a carta XI, datada de 10 de janeiro de 1878 (pp.300-301) quando a vitória russa sobre a Turquia se dava já como adquirida:
‘Onde estão as horas alegres em que um coração liberal se regozijava, pensando que o Czar e o seu Governo autoritário, despótico, teocrático, semibárbaro, humilhado pelas derrotas na Bulgária, seria na Rússia feito em pedaços por uma revolução niilista?’
(…)
‘É doloroso ver que esta guerra injusta tem como resultado fortificar, enfatuar, perpetuar um governo inimigo de toda a liberdade, defensor de todo o despotismo, cuja justiça se chama Sibéria, cuja administração se chama Polónia, que tempera a liberdade dos jornais pelo assassinato dos jornalistas, que liberta os servos para melhor os poder explorar pelos impostos, que condena um romancista, ou um poeta a prisão perpétua se o seu poema ou a sua novela desagradam à polícia, que expulsa todo o estrangeiro suspeito de liberalismo como se enxota um cão, que tem como sistema de governo a delação e a espionagem, que chicoteia as mulheres que os maridos não convêm, e que civiliza as raças de civilização inferior – destruindo-as.’
Não é de resto só relativamente ao despotismo imperial russo que as narrativas de Marx e Eça se assemelham, mas é também no que respeita à ambiguidade de ambos perante o ‘fanatismo islâmico’ (expressão repetidamente usada por Marx, mas não por Eça) e na forma como ambos adoptam implicitamente o Reino Unido como ponto de partida para os seus pontos de vista, que são patentes as coincidências.
Não tenho razões para pensar que Marx e Eça se tenham conhecido pessoalmente ou que o segundo se tenha inspirado de qualquer forma no primeiro. Os estilos são diferentes: a prosa de Eça é literariamente mais trabalhada, mas analiticamente menos conseguida do que a de Marx. Só um estudo comparativo da imprensa da época nos permitiria ir mais longe no entendimento de como um e outro dos autores se situavam perante as correntes coevas da opinião pública, genericamente ocidental, e especificamente londrina.
Poderemos também naturalmente observar que as análises de Marx e Eça estão datadas – e estão-no, como não poderia deixar de estar, de vários pontos de vista – mas nada melhor do que ler as declarações de Putin, ou na ocorrência as de Lavrov, dada a persistente e misteriosa ausência do primeiro dos principais palcos comunicacionais, para entender como essas análises permanecem actuais.
O putinismo é o estalinismo recauchutado, mas o estalinismo é ele mesmo uma versão particularmente brutal do czarismo, tão bem analisado por Marx ou Eça.