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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

O palco do Indo-Pacífico

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Na sombra da agressão russa

Introdução

A recente cimeira das nações Quad (Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos) no Japão foi confrontada por uma frota russo-chinesa de bombardeiros nucleares intersectada pela força aérea japonesa (Financial Times, 2022). Tendo em conta embora que os exercícios armados russo-chineses  não são incomuns hoje em dia (veja-se, por exemplo, o mais recente exercício naval Irão-China-Rússia no início de 2022, Radio Liberty, 2022), este estabeleceu uma ligação inequívoca entre a última invasão da Rússia  e o confronto entre a aliança Quad e o expansionismo chinês na região do Indo-Pacífico.

Foram várias as interpretações feitas sobre o significado específico desta demonstração comum de força. Alguns interpretaram-na como uma mensagem enviada ao Presidente dos EUA (Kubo, 2022); outros mostraram-se mais inclinados a ver o Japão como o principal alvo (Panda, 2022); ainda outros sublinham uma ameaça específica a Taiwan, lembrando que exercícios semelhantes têm sido realizados anualmente desde 2019 (Financial Times, 2022, op. cit.).

A exibição dos bombardeiros não contribuiu para um desanuviamento da atmosfera de confrontação global (e da sua dimensão nuclear). Ela merece uma atenção europeia específica no quadro do Indo-Pacífico.

  1. Aliança atlântica

No dia em que comecei a trabalhar nestas linhas, celebrámos o   78º aniversário do dia D, dia em que as forças aliadas lideradas pelo Exército dos Estados Unidos desembarcaram nas margens da Normandia para salvar a Europa de si mesma. É a melhor recordação de sempre que nós, europeus, temos da importância dos Estados Unidos para a proteção da liberdade e da democracia; uma importância que sobreviveu, não diminuída, ao fim da Guerra Fria, como sublinha o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, no Fórum Económico de Davos 2022  referindo a agressão russa na Europa.

No entanto, há memórias menos gloriosas, por exemplo, o acordo intermediado pelo chefe da diplomacia dos EUA para a retirada do Vietname. As minhas recordações de infância desse acontecimento criaram uma impressão de ‘déja vu’ ao ver as imagens da catastrófica retirada da OTAN de Cabul.

O discurso de Jens Stoltenberg não teve o impacto que merecia na imprensa, apesar de se ter centrado no cerne da questão: o egoísmo das potências ocidentais obcecados com os lucros e não com os valores.  Em contraste, a telepresença de Henry Kissinger no mesmo Fórum fez manchetes em todo o lado, talvez sobrestimando a sua importância.

Há cerca de quinze anos, uma delegação europeia em que me integrava teve o seu momento de excitação ao ver Henry Kissinger e Condoleezza Rice a jantar no Hotel Watergate, em Washington DC.  Um funcionário americano menos entusiasta, no entanto, respondeu ao meu comentário na altura referindo que Kissinger nasceu na Europa.

A parte do discurso de Kissinger em Davos mais citado na imprensa ocidental foi aquela em que se mostrou favorável a ceder uma parte da Ucrânia à Rússia (ver, por exemplo, o ‘Washington Post’).  Contudo, a sua declaração mais importante foi a de se apresentar como o autor original da proposta de Putin de ‘neutralizar’ a Ucrânia:

‘Há cerca de oito anos, quando surgiu a ideia de adesão à Ucrânia na OTAN, escrevi um artigo no qual eu disse que o resultado ideal seria que a Ucrânia pudesse ser constituída como um estado neutro, como uma ponte entre a Rússia e a Europa.’ (Kissinger, 2022)

O calendário de oito anos para a ideia de adesão da Ucrânia à OTAN é consistente com o calendário da primeira invasão russa da Ucrânia, mas certamente que não o é com a discussão da presença da Ucrânia na OTAN (ver, por exemplo, Bukvoll, 1997).  Além disso, esta proposta  de neutralidade coincide com a principal exigência formal das forças invasoras. Existe um segundo objectivo proclamado que é o da ‘desnazificação’, mas esse pode ser interpretado de duas formas diversas: ou como pura propaganda, ou como forma de exigir o controlo político total sobre o país. Entre várias outras razões, o uso generalizado de grupos abertamente nazis pelos invasores não permite que esta retórica possa ser tomada a sério (ver Radio Free Europe, 2022).  A característica mais importante desta proposta de Kissinger é  a sua lógica inerente de ‘esferas de influência’, uma lógica que as instituições europeias rejeitaram explícita e enfaticamente durante o Conselho Informal de Ministros dos Negócios Estrangeiros de janeiro de 2022, que antecedeu a invasão.

Este conflito não é fundamentalmente impulsionado por disputas sobre recursos, marcadores étnicos ou território. É antes o reflexo da luta entre a defesa da liberdade e da democracia de um lado e o medo do contágio desses valores no seu próprio território, do outro lado, como o Economist intuiu parcialmente: ‘Talvez ele queira que a Ucrânia falhe porque se fosse uma democracia próspera, seria um desmentido à sua afirmação de que os valores ocidentais são inaplicáveis na Rússia eslava e ortodoxa.’  (Economist, 2022).

Voltando ao Vietname, seria certamente demagógico destacar Kissinger como motor do complexo conjunto de desenvolvimentos que finalmente resultou no desastre de Saigão de 1975. Esse desastre foi em última análise consequência de uma mentalidade que progressivamente tomou conta dos mecanismos de decisão da nação. A vontade democrática, quer do povo americano ou dos países envolvidos, foi sistematicamente minimizada e finalmente esquecida.

O envolvimento dos Estados Unidos, simbolizado no dia D, só foi possível porque recebeu a aprovação do seu povo, não porque era ‘a coisa certa a fazer’ de forma abstracta.  Foi ainda menos a consequência de qualquer cálculo diplomático, semelhante aos movimentos de xadrez em que Kissinger se especializou.  Em sentido inverso, os EUA perderam a guerra do Vietname dentro das suas fronteiras e entre a opinião pública global, e não no campo de batalha do Sudeste Asiático.

A derrota dos EUA no Sudeste Asiático resultou numa enorme catástrofe humana, incluindo um genocídio de grandes dimensões no Camboja, incomparável no seu horror a tudo o que possa ter acontecido durante a guerra. Por outro lado, abriu caminho à ruptura da aparentemente vitoriosa coligação comunista antiamericana – na medida que o Vietname invadiu o Camboja, e a China tentou uma incursão falhada no Vietname.

Enquanto muitos previram  que o desastre dos EUA na Indochina anunciava o fim de uma  ordem internacional  dominada pelos Estados Unidos e, apesar de importantes crises como  as da conversão do  dólar, choques petrolíferos, estagflação e  a revolução islâmica no Irão, duas décadas depois, o estatuto dos EUA  foi reforçado, e foi mesmo classificado como o de ‘hiperpotência’ (The International Herald Tribune, 1999).

Independentemente das palavras de Kissinger em Davos, qualquer avaliação objetiva e equilibrada concluirá necessariamente que os Estados Unidos são o principal pilar para a defesa da independência europeia e para a salvaguarda dos seus valores – hoje tanto como há 78 anos.  O apoio dado à resistência ucraniana é o sinal mais revelador a este respeito.

De acordo com os dados mais recentes sobre o apoio à Ucrânia fornecidos pelo Instituto de Kiel para a Economia Mundial da Alemanha (2022), o apoio humanitário, financeiro e militar dos Estados Unidos à Ucrânia é muito maior do que a soma dos outros 37 grandes doadores.

  1. O quadro de confrontação global

A firmeza do apoio à Rússia pelos seus aliados mais próximos foi posta em causa quando tanto a China como o Irão se abstiveram na votação das Nações Unidas condenando a invasão deste ano. A imprensa tem ecoado numerosas vozes dissidentes chinesas sobre o acerto de apoiar um poder internacional fora-da-lei, com uma máquina militar defeituosa, que reflete um sistema político disfuncional (por exemplo, no New York Times, 2022).  A imprensa também alimentou uma impressão de rivalidade intensa entre a Rússia e o Irão para a conquista do mercado petrolífero chinês (Sharafedin et al., 2022)

É uma questão de bom-senso elementar não favorecer qualquer consolidação de alianças entre os adversários. Mesmo neste caso, é igualmente importante não permitir que esta precaução seja ofuscada por desejos transformados em realidades ou, pior ainda, que ela seja manipulada por inimigos para nos levar a agir erroneamente.

‘Apaziguamento’ é uma expressão que ganhou um significado pejorativo, uma vez que foi inequivocamente associada à traição da Checoslováquia democrática em nome da satisfação do expansionismo de Hitler.  Um efeito colateral negligenciado desse acto de apaziguamento, fundamental neste famoso caso, foi exatamente o de este favorecer uma aliança entre aqueles que se opunham a poderes apaziguadores (França e Reino Unido).

A traição da Checoslováquia pelas potências ocidentais, para além de destruir qualquer respeito pelos valores democráticos e criar um incentivo à nova agressão de Hitler, também encorajou a União Soviética a aliar-se com a Alemanha, um compromisso que resultou na aliança soviético-alemã e que tornou a guerra inevitável.  (Roberts, 1995, pp 49-61).

Apaziguar não é necessariamente a pior atitude; no entanto, um retrocesso por parte dos Estados Unidos em relação às garantias de defesa a Taiwan seria errado, uma vez que encorajaria a agressividade chinesa e assustaria os aliados dos EUA na região Indo-Pacífico.  Também não impediria a consolidação da aliança russo-chinesa.  Ainda assim, as opiniões em contrário parecem ser dominantes na diplomacia e nos círculos da imprensa dos EUA. De acordo com o título de um artigo da Voice of America (2022) ‘O Departamento de Estado dos EUA não apoia os comentários anormalmente contundentes de Biden’ e o editorial do New York Times (Kanno-Youngs, 2022) tem como título: ‘As palavras de Biden sobre Taiwan causam desconforto entre os aliados’.

É difícil encontrar uma política de apaziguamento contemporânea tão consistentemente desastrosa como a do Ocidente em relação ao Irão – uma política de apaziguamento que só conheceu interrupções episódicas desde a Revolução Islâmica.

O apaziguamento da ditadura iraniana revelou-se repetidamente contraproducente, uma vez que repetidamente encorajou, e nunca moderou, as ambições dos governantes do Irão.  De forma igualmente importante, o apaziguamento minou o movimento democrático do povo iraniano, bem como aumentou o sofrimento dos países vizinhos do mundo árabe pela agenda expansionista do Irão.

Um exemplo deste último facto é a guerra iraniana contra a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, levada a cabo através de ataques de mísseis contínuos por parte da sucursal dos Guardas Revolucionários Islâmicos no Iémen.  O Ocidente nada fez para impedir estes ataques; de facto, os EUA retiraram mesmo a secção dos Guardas Revolucionários Islâmicos no Iémen, o Ansar-Allah, da sua lista de organizações terroristas (Departamento de Estado dos EUA, 2021).  Não é de estranhar que estes e outros países árabes se mostrassem pouco entusiasmados em ajudar os países ocidentais a aplicar sanções relacionadas com  a energia contra a Rússia (Wall Street Journal, 2022).

Mais importante ainda, as democracias ocidentais devem resistir à infiltração dos seus inimigos através de sofisticadas campanhas  de influência e desinformação, um tema a que a SADF tem dedicado atenção repetida, nomeadamente aqui e aqui.

  1. Reforçar o Quad

Como a SADF salientou no seu plano de atividades para 2022, não vemos qualquer vantagem na multiplicação de iniciativas regionais relacionadas com a segurança na região Indo-Pacífico, como a nova AUKUS.   Em vez disso, a prioridade deveria ser o reforço do Quad – tendo em conta as suas valências democráticas, ambientais, económicas e de conectividade com a dimensão crucial de segurança.

A região do Indo-Pacífico precisa do apoio político de outros países – mas não de importar rivalidades europeias em torno do Brexit ou litígios comerciais de interesses instalados e míopes sobre a venda de submarinos (o apelo de Stoltenberg para dar prioridade aos valores sobre os lucros aplica-se certamente aqui). O Indo-Pacífico não precisa de lógicas etnolinguísticas como a do AUKUS, nem de novas preocupações com as regras de proliferação nuclear (neste último ponto, ver Bana, 2021).

A inclusão no Quad da maior democracia do Mundo (de acordo com algumas estimativas demográficas recentes, o maior país do mundo, ver Tang, 2022) é de longe a conquista mais importante  desta organização. O envolvimento da Índia no Quad é provavelmente a principal preocupação dos países que desfilaram os seus bombardeiros nucleares no espaço aéreo japonês. Certamente não agradará aos países que promoveram campanhas intensas de influência anti Índia tanto nos Estados Unidos como na Europa.

A Austrália é um aliado histórico dos Estados Unidos. O Japão consolidou o seu papel de precursor na ‘orientalização’ do conceito de Ocidente.  A Índia, uma democracia plena, ainda está numa liga de desenvolvimento diferente dos seus três parceiros; Nova Deli foi pioneira no Movimento Não-Alinhado e é uma recém-chegada a este tipo de estruturas.

Por conseguinte, é sensato considerar cuidadosamente o contributo crucial da Índia para o potencial e o futuro desenvolvimento do Quad.  Para começar, não ajuda certamente dar lições à Índia sobre as escolhas e políticas específicas que este país deve adoptar em relação ao cenário de confrontação europeia. Isso é tanto mais assim quanto a UE e a OTAN – as instituições ocidentais diretamente envolvidas, parecem incapazes de ultrapassar as diferenças marcantes que se fazem sentir no seio das suas próprias organizações.

A França assumiu a liderança europeia ao juntar-se aos exercícios de defesa Quad na Baía de Bengala (o Times of India, 2021 expressivamente intitulado: ‘Com os olhos na China, o Quad+França inicia os exercícios navais na Baía de Bengala’). Cabe à França assumir a liderança da Europa neste delicado exercício de complementar as alianças atlântica e do indo-pacífico.

Este exercício deve necessariamente evitar ser vítima de disputas como a lamentável saga submarina do ano passado (ver o dossier da Disputa Submarina em França24, 2022).  Mais importante ainda, temos de evitar ser torpedeados pelos submarinos de influência mais perigosos que continuam a atacar tanto a União Europeia como os Estados Unidos a partir do interior.

PS artigo que adapta a minha publicação no Fórum Democrático da Ásia do Sul

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