Em meio à fome, ao desemprego e ao desmonte do Estado nos últimos anos, Brasil viu crescer número de pessoas exploradas em condições de trabalho análogas à escravidão.
Mais um 28 de janeiro chega sem que o Brasil tenha conseguido eliminar uma de suas grandes mazelas históricas: a do trabalho análogo ao escravo. Às vésperas da data dedicada a reafirmar a necessidade do combate a este tipo de prática, escolhida em homenagem às vítimas da Chacina de Unaí, números do próprio Ministério do Trabalho indicam que mais do que estarmos ainda longe de eliminá-lo, regredimos nessa área nos últimos anos.
Ao todo, em 2022, 2.575 pessoas foram resgatadas em situação análoga à de escravo, maior número dos últimos dez anos. O site Repórter Brasil lembra que desde maio de 1995, quando foram criados os grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, foram contabilizados 60.251 resgates, além de R$ 127 milhões pagos em salários e valores devidos a esses trabalhadores.
Nos últimos anos, ações e omissões dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro pioraram o quadro. Além do desemprego, da fome e da vulnerabilidade social, que levam as pessoas a se sujeitarem às mais degradantes situações para sobreviver, o desmonte das estruturas públicas, a precarização do trabalho, o encorajamento implícito e a “vista grossa”, sobretudo do bolsonarismo, a práticas desumanas formaram o cenário ideal para o agravamento dessa situação.
Adilson Araújo, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), lembra que a partir de 2016, com agenda de Temer e depois com a eleição de Bolsonaro, “tudo aquilo que se construiu por mais de uma década se transformou em letra morta. Todos aqueles espaços de diálogo social, de trabalho efetivo, foram literalmente dissolvidos, seja pelo esvaziamento da função do trabalho da fiscalização e inspeção do trabalho, seja pela falta do concurso público que não renovou a capacidade de responder ao crescimento da demanda, seja pelo esvaziamento do órgão”.
Neste mesmo sentido, o desembargador Marcelo D’Ambroso, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), recorda que uma das primeiras medidas do governo anterior foi extinguir o Ministério do Trabalho, já no dia 1º de janeiro de 2019, que acabou tendo de ser recriado depois. “Obviamente, houve decréscimo de atuação da inspeção laboral a partir de sucessivos desmontes operados desde o golpe de 2016 que foram empreendidos contra o Estado social e democrático de direito, precarizando os serviços públicos de atenção ao povo ao mesmo tempo em que se prestigiava pagamento de juros de dívidas públicas ao grande capital, redirecionando a máquina estatal para a reprimarização da economia”, destaca.
Em sua avaliação, esse movimento “se destinou a converter o Brasil em grande fazenda/território de fornecimento de recursos naturais e mão-de-obra barata para grandes potências (neocolonialismo), mantendo o foco no processo de acumulação por despossessão do povo em favor da grande elite financeira, e sucessiva militarização do país, com diminuição da classe média e aumento da pobreza”.
Mas, para além do ambiente produzido nos últimos anos e das condições históricas criadas pela escravidão no Brasil, há aspectos jurídicos e do próprio sistema capitalista que acabam dando sustentação e perenidade à exploração extrema dos trabalhadores.
O desembargador argumenta que um dos entraves para a superação desse tipo de exploração diz respeito à falta de atuação de polícia judiciária. “Salvo raras exceções, os casos de trabalho análogo ao escravo ficam na esfera cível, das indenizações trabalhistas, por dano moral, dano moral coletivo, das ações civis públicas do Ministério Público do Trabalho, das penalidades administrativas impostas pela inspeção do trabalho. Apesar de constituírem uma forma de reparação, não são suficientes para reprimir e inibir a prática”.
Ele explica que o delito está previsto no Código Penal (artigo 149), mas dificilmente é aplicado “por força de um limbo policial e judiciário que não avança para efetividade da norma”.
Mas, para ele, a grande questão é que “a legislação penal do capitalismo se direciona à proteção da propriedade/patrimônio (leia-se capital), e os dados do sistema penitenciário brasileiro são reveladores quanto a percentuais de encarceramento por delitos contra a propriedade (furtos, roubos), que constituem a maioria disparada das prisões e dos processos criminais”.
D’Ambroso argumenta que “ainda é um tabu discutir sobre delitos do capital contra a sociedade, especialmente contra trabalhadoras e trabalhadores, lembrando que o anteprojeto de um novo código penal simplesmente suprime o capítulo dos delitos contra a organização do trabalho”.
Trabalho escravo “moderno”
Na dinâmica exploratória do sistema capitalista, novas formas de atividades laborais vão surgindo, mas sempre tendo como foco o princípio da busca pelo lucro em detrimento do respeito à vida e à dignidade. Um desses “avanços” veio com aplicativos de transporte e entrega, que precarizaram profundamente as condições de trabalho e de vida, sobretudo entre jovens.
O desembargador Marcelo d’Ambroso classifica esse tipo de exploração como crime “no qual se aproveita a novidade algorítmica para mascarar práticas exploratórias cruéis da classe trabalhadora. Veja bem, quando uso o adjetivo cruel me refiro às centenas de mortes e lesões de trabalhadores e trabalhadoras por aplicativos, sobretudo na função de tele-entrega, na qual a pessoa, sem cobertura previdenciária, sem vínculo empregatício reconhecido, sem limitação de jornada, sem décimo terceiro, sem férias, sem FGTS, sem direitos – a não ser a remuneração estrita pelo serviço prestado —, perde a vida ou adoece trabalhando”.
Para o presidente da CTB, Adilson Araújo, “não há razão alguma para, em pleno século 21, a gente conviver com esse tipo de trabalho degradante, desumano que tem ceifado vidas de jovens que, enganados pelo canto da sereia de que há uma boa oferta de emprego em dadas áreas, terminam sendo forçados ao trabalho à exaustão, sem possibilidade alguma de desvinculação porque a não regulação desse trabalho e a forma de contratação termina sendo uma bola de ferro nos pés para que esse trabalhador seja submetido às imposições de patrões que não têm nenhum nível de sensibilidade”.
Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que a situação dessas pessoas “beira o trabalho escravo”, posição reafirmada pelo ministro do Trabalho, Luiz Marinho. O presidente promete que o governo apresentará proposta para regulação trabalhista para o setor. Além de enfrentar o desequilíbrio nas relações de trabalho, a ideia é também garantir direitos a esses profissionais.
Novo ciclo para o combate à exploração
A chegada de Lula à presidência abre um cenário de novas perspectivas também para o enfrentamento dessa chaga social. “A gente vai precisar, com esse novo ciclo que se inaugura, resgatar primeiro a centralidade da agenda do trabalho decente e dar voz à sociedade civil organizada”, defende Adilson Araújo.
Para ele, “se o Brasil hoje reivindica o seu legítimo direito enquanto nação de não constar no mapa da fome, eu penso que do mesmo modo temos o grande desafio de tirar o país da lista suja do OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esses são pressupostos reivindicados pelas centrais sindicais e eu penso que nós devemos seguir ambicionando esse propósito: promover as transformações do nosso tempo por um trabalho digno, um salário justo, com direito à igualdade, liberdade, saúde e segurança”.
O desembargador Marcelo D’Ambroso salienta que hoje é necessário “um acordo político, interinstitucional, envolvendo os Três Poderes, para estabelecer parâmetros de humanização do capitalismo brasileiro (enquanto tal sistema permanecer vigente no país), passando pela implantação de polícia judiciária para os crimes praticados pelo capital contra a classe trabalhadora”.
Neste sentido, ele defende medidas como, por exemplo, a definição de competência da Polícia Federal e criação de Delegacias de Polícia especializadas não só em crimes de exploração de trabalho em condições análogas à escravidão, como também de fraudes contra a legislação do trabalho e acidentes do trabalho; definição de competência judiciária para apuração desses delitos, preferencialmente na Justiça do Trabalho; capacitação e requalificação em Direitos Humanos de delegados, juízes, membros do Ministério Público, funcionalismo do Executivo, Legislativo e Judiciário e o reaparelhamento da inspeção do trabalho, do Ministério do Trabalho.
Em síntese, conclui, “se queremos avançar, é necessário rediscutir o projeto de desenvolvimento do Brasil, que não pode se dar às custas de exploração do meio ambiente e da classe trabalhadora”. Enquanto permanecer o sistema capitalista no país, diz, “temos de lutar pela sua humanização”.
por Priscila Lobregatte | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado