Numa das suas crónicas diárias no jornal de que é directora, Rosália Amorim escreveu esta semana que «Uns fazem sacrifícios, outros recebem prémios», a propósito da questão dos prémios de gestão na TAP.
Polémicas à parte (como se quase tudo o que envolve a transportadora aérea nacional não fosse polémico), quero só debruçar-me sobre o parágrafo de remate do texto, onde a autora conclui que a controvérsia sobre os prémios milionários se justifica pelo simples facto de estarmos a falar de uma empresa pública, já que “uma empresa privada, nada disto levantaria ondas. No privado são os acionistas que decidem e têm a faca e o queijo na mão e, para máximo desempenho e máxima meritocracia, deve mesmo haver retribuição e prémios a condizer. Numa empresa que ainda é pública, pede-se um pouco mais de decoro”, opinião que configura uma génese de pensamento que tem suportado e agravado o desequilíbrio que actualmente regista o modelo capitalista de distribuição de rendimento.
A banalização da ideia que o problema reside no facto de estarmos a falar de uma empresa pública foi apenas o primeiro passo para chegarmos a uma situação como a registada em 2019, ano em que os CEO ganharam dez vezes mais que os trabalhadores, em termos de remunerações fixas, porque se adicionarmos a componente variável, aquele diferencial sobe para trinta vezes o salário médio da empresa. E isto para valores médios, porque casos há – GALP, EDP, Semapa, Sonae e CTT – onde os CEO receberam uma remuneração superior a 50 vezes o salário médio dos restantes trabalhadores, para não falar da situação extrema – a Jerónimo Martins – cujo CEO recebeu uma remuneração 167 vezes superior.
Confirmando a ideia que o fosso salarial não pára de crescer, em 2021 a diferença salarial naquela empresa de distribuição alimentar aumentou para 263 vezes, ou seja, em dois anos (os dois duros anos da pandemia) o CEO da Jerónimo Martins viu a sua remuneração aumentar 57,5%, enquanto a maioria das empresas nacionais continua a aumentar os salários abaixo da taxa de inflação, tornando cada vez mais evidente que continua a crescer o fosso salarial entre administradores e trabalhadores.
O problema da distribuição do rendimento e da concentração da riqueza anualmente produzida num pequeno número de beneficiários não se resume à dicotomia empresas públicas versus privadas, nem pode continuar a ser mascarado com o argumento de um qualquer mérito que a tão poucos é reconhecido e de forma tão díspar.
O verdadeiro cerne do problema tem que ser procurado e encontrado num sistema perverso onde normalmente aqueles obscenos níveis de remunerações e prémios são tantas vezes fixados por quem deles beneficia ou aspira beneficiar em breve. Mesmo no universo privado, a generalidade dos accionistas têm pouca ou nenhuma intervenção no processo de escolha e de fixação do quadro remuneratório das administrações, que o famigerado argumento meritocrático procura blindar, além das absurdas cláusulas pára-quedas que estão na origem das milionárias indemnizações por rescisão.
Quando os sinais e evidências de que a progressiva constituição de uma casta de superiores e inimputáveis gestores já se está a transferir da esfera empresarial para a política, mostra-se ainda mais imperioso que os cuidados e o controlo democrático destas situações não deva incidir apenas sobre as mais mediáticas das “transferências” entre o sector público e o privado – aquelas que geram maior alarido – mas igualmente sobre a rede jurídica que servindo simultaneamente interesses privados e públicos, enxameia os grupos parlamentares e assessora ministérios na produção de legislação e na celebração de contratos, invariavelmente desfavoráveis ao interesse geral.