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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

A tributação das infraestruturas em IMI

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Noção de infraestrutura

Alguns ativos são geralmente descritos como infraestruturas. Embora não exista definição universalmente aceite de infraestruturas, estes ativos apresentam usualmente algumas ou todas as seguintes características:

  • Fazem parte de um sistema ou rede;
  • São de natureza especializada e não têm usos alternativos;
  • São inamovíveis; e
  • Podem estar sujeitas a restrições na alienação.

As infraestruturas satisfazem a definição de ativos fixos tangíveis e devem ser contabilizados de acordo com esta Norma. Incluem-se entre os exemplos de infraestruturas as redes de estradas, os sistemas de esgotos, os sistemas de abastecimento de água e energia e as redes de telecomunicações.” (i)

 

Bens de domínio público

Pode ser útil relacionar o elenco das infraestuturas com o dos bens de domínio público considerado na Constituição de 1933: “Pertencem ao domínio público do Estado(ii): 1º Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais e outras riquezas naturais territoriais existentes no subsolo(iii); 2º As águas marítimas com os seus leitos; 3º Os lagos, lagoas e curos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos rios ou álveos, e bem assim os que por decreto especial , forem reconhecidos de interesse e utilidade pública como aproveitáveis para produção de energia eléctrica, nacional ou regional ou para irrigação; 4º As valas abertas pelo Estado; 5º As camadas aéreas superiores ao território, para além dos limites que a lei fixar em benefício do proprietário do solo; 6ª As linhas férreas de interesse público de qualquer natureza, as estradas e caminhos públicos; 7º As zonas territoriais reservadas para a defesa militar; 7º Quaisquer outros bens sujeitos por lei ao regime do domínio público.”

A Constituição publicada em 1976 não estatuiu sobre a matéria, no entanto o Decreto-Lei nº 477/80, de 15 de Outubro que “criou” o Inventário Geral do Património do Estado ou melhor mandou realizar estudos sobre uma matéria que Salazar, enquanto Ministro das Finanças mandara regular, para depois dela se desinteressar, veio a estatuir que para efeitos daquele diploma, integravam o domínio público do Estado um conjunto de situações que iam de uma alínea a) a uma alínea p) correspondendo esta última a “Quaisquer outros bens do Estado sujeitos por lei ao regime do domínio público”. O “para efeitos do diploma” tinha como consequência que poderiam ser inventariados como domínio público bens que não estavam ou viriam a deixar de estar abrangidos por lei que os sujeitasse a tal regime e de facto o âmbito do domínio público viria a sofrer em alguns sectores, modificações.

Assembleia da República

Em 1989 as referências ao domínio público viriam a ser reconstitucionalizadas: “1. Pertencem ao domínio público: a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos; b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário; c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção; d) as estradas e) as linhas férreas nacionais; Outros bens como tal classificados por lei. 2. A lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites”.

É de ter em conta que:

  • fazem parte do domínio público tanto bens do domínio público natural como bens do domínio público artificial, isto é, resultantes da acção humana, designadamente resultantes de investimentos;
  • os bens do domínio público caracterizam-se por em geral estarem associados à produção de uma utilidade que é usufruída pela generalidade da população, sem prejuízo da possibilidade de atribuição de licenças de uso privativo;
  • de modo geral é um conjunto de bens que como uma universalidade está apta a produzir essa utilidade, sem prejuízo da substituição dos bens integrados no conjunto ou da desafectação de parte deles do domínio público quando deixem de ser necessários;
  • os bens do domínio público estão legalmente protegidos contra uma apropriação privada estando por lei subtraídos ao comércio jurídico e sendo inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis(iv)(v)

Repare-se que os bens de domínio público podem ser objecto de concessão de exploração e que a realização de investimentos que possam dar lugar a bens classificáveis como de domínio público pode incluir cláusulas que determinem que o Estado é desde o início o titular da infraestrutura criada ou que esta reverte para o Estado ou entidade pública concedente, a título gratuito, no fim da concessão

O Estado é também titular de bens que integram o seu domínio privado sobre os quais tem direitos semelhantes aos de qualquer proprietário, enquanto que sobre os bens de domínio público, segundo o Regime Jurídico do Património Imobiliário Público aprovado em 2007 tem meramente poderes de “uso, administração, tutela, defesa e disposição(vi). Note-se que o diploma apenas regula o património imobiliário.

 

Valor

O problema da atribuição de valor a bens do domínio público sempre se revelou controverso no plano teórico porque, subtraídos ao comércio jurídico e inalienáveis, não têm um valor de venda no mercado.

No entanto o Sistema de Normalização Contabilística das Administrações Públicas optou po incluir bens de domínio público e atribuir-lhes valor através de outros critérios.

 

Registo

Os bens do domínio privado do Estado estão obrigados a registo e devem constar das Conservatórias de Registo Predial e das matrizes prediais organizadas pelos serviços de Finanças

Ministério das Finanças

Os bens do domínio público não estão sujeitos a semelhante obrigação. Em todo o caso note-se que a Constituição de 1933 incluiu no artigo onde definiu os bens pertencentes ao domínio público do Estado(vii) um parágrafo do seguinte teor

O Estado procederá à delimitação dos terrenos que, constituindo propriedade particular, confinem com bens de domínio público

desta forma se protegendo contra tentativas de usurpação de bens do domínio público.

 

Aplicação do IMI

A incidência do IMI está hoje regulada em termos algo diferentes do que sucedia inicialmente no diploma de 2003 que criou o Imposto Municipal sobre Imóveis (Decreto-Lei nº 287/2003 de 12-11(viii)) e que isentava o Estado. Na realidade o Artigo 11º (Entidades públicas isentas) dispõe actualmente: “1 – Estão isentos de imposto municipal sobre imóveis o Estado, as Regiões Autónomas e qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, compreendendo os institutos públicos, bem como as autarquias locais e as suas associações e federações de municípios de direito público. 2 – Não estão isentos a) os serviços, estabelecimentos e organismos do Estado que tenham caráter empresarial, exceto os hospitais e unidades de saúde constituídos em entidades públicas empresariais em relação aos imóveis nos quais sejam prestados cuidados de saúde. b) O património imobiliário público sem utilização, nos termos definidos em diploma próprio. 3 – Considera-se património imobiliário público sem utilização, nos termos definidos em diploma próprio, o conjunto de bens imóveis do domínio privado do Estado ou dos institutos públicos que se encontrem em inatividade, devolutos ou abandonados e não tenham sido objeto de qualquer uma das formas de administração previstas no artigo 52.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, ou se encontrem integrados em procedimento tendente a esse efeito, por um período não inferior a 3 anos consecutivos.”

É conhecida a pendência de conflitos, dos quais se tem falado muito ultimamente.

Num caso o Município de Santa Cruz regido pelo JPP – Juntos Pelo Povo, requereu em 2014 à Administração Tributária e Aduaneira a inscrição na matriz do Aeroporto Internacional da Madeira, recorreu no mesmo ano ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal e obteve recentemente vencimento (processo 297/14.9BEFUN). Sustenta o juiz, na sentença que amavelmente me foi facultada pelo deputado regional do JPP, Élvio de Sousa, que a lei não exclui a inscrição matricial de bens do domínio público regional, que os terrenos integrados no aeroporto tinham já tal inscrição e que, ainda que o Aeroporto fosse do Estado ou da Região Autónoma o ter carácter empresarial o impedia de ter isenção de IMI. Não me admiraria que venha a haver recurso, agora ou quando se for proceder à avaliação do Aeroporto.

Estão também sobre a mesa possíveis processos contra a EDP e a Engie por parte das Câmaras Municipais de Mogadouro e Miranda do Douro a propósito do IMI alegadamente devido em função das barragens de Miranda do Douro, Picote e Bemposta. Já li entretanto o parecer da Procuradoria Geral da República redigido em 2006 e publicado em 2007 cujas referências são fornecidas pelo advogado António Preto que assina o artigo inserido no Público de 14 de Fevereiro, O IMI das barragens.

Barragem de Picote (Por César J. Pollo – Obra do próprio, CC BY-SA 4.0)

Terei de o voltar a ler porque me chamou sobretudo a atenção a alteração de que o Parecer dá nota – entre a data de construção das barragens e a actualidade – do poder atribuído ao Estado para regular os novos empreendimentos e do sentido dessa regulação. Entretanto o senhor advogado fala de EDP e de IMI como se as barragens não tivessem sido construídas para a Hidroeléctrica do Douro muito antes de haver EDP e o IMI não fosse um imposto de criação recente. Apesar da aparente viragem da Administração Tributária e Aduaneira, anunciada no artigo julgo que a avaliação das barragens também não virá a ser fácil.

Barragem de Bemposta

Creio que estamos neste momento a sofrer as consequências da publicação de sucessivos diplomas sobre património público, mal concatenados entre si. Não me admiraria que a solução das situações que se têm ultimamente suscitado acabe por vir a ser legislativa.

 

Notas

(i) A partir de Ana Maria Rodrigues (coord.). Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas, 2017, Almedina, Coimbra.

(ii) O Estado, as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais, ou seja as pessoas colectivas territoriais, são titulares de domínio público.

(iii) Com um parágrafo que ressalva que destas riquezas “são expressamente exceptuadas as rochas e terras comuns e os materiais indicados na construção”, texto integrado em formulações posteriores.

(iv) Por exemplo é impossível adquirir um bem imóvel por usucapião.

(v) Ver o muito antigo estudo “A Direcção-Geral da Fazenda Pública – seu papel na Administração Pública, II- Serviços do Património”, de António Cândido Mouteira Guerreiro, in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal nº 89, de 1969, e o mais moderno Regime Jurídico do Património Imobiliário Público aprovado pelo DL nº 280/2007, de 7-8.

(vi) Como se referiu na nota anterior, aprovado pelo DL 280/2007, que creio dever-se à iniciativa do então Secretário de Estado do Tesouro e Finanças Carlos Costa Pina.

(vii) Artigo 49º, já transcrito.

(viii) A reforma da tributação do património, embora publicada por Manuela Ferreira Leite, deve-se, creio, ao Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do anterior Governo, Rogério Fernandes Ferreira.

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