Quem tenha acompanhado minimamente o problema da habitação em Portugal não pode estranhar, nem negar, a evidente mercantilização que este bem de consumo essencial tem sofrido neste último meio século. A verdadeira dimensão do anacronismo desta desmesurada aposta no crédito como via principal para o acesso à habitação será transmitida pelo resultado de um estudo da consultora Deloitte, que em 2022 colocou Portugal entre os países com acesso mais fácil à aquisição de habitação (medido pelo número de salários anuais brutos necessários)…
…mesmo quando há muito se reconhece o elevado peso assumido pelos encargos com a habitação na despesa das famílias, valores que quase triplicaram no período de uma geração, condenando aquele agregado macroeconómico a uma acentuada erosão do seu rendimento disponível e da sua qualidade de vida.
Não será, pois, de estranhar que a habitação se tenha transformado num dos mais preocupantes problemas sociais. É que a falta de soluções habitacionais exequíveis e financeiramente suportáveis não deve ser encarada apenas como uma condicionante ao bem-estar social, mas ainda como um pesado factor adicional para o decréscimo das taxas de fertilidade e natalidade e, por natural acréscimo, um importante factor para a desastrosa situação da pirâmide etária nacional.
Numa área tão sensível como a da habitação, onde se chocam interesses tão díspares, seria de esperar a formulação de políticas bem definidas e orientadas no sentido do interesse geral, ao contrário do que temos tido. Por tibieza ou claro apoio a práticas orientadas para o enriquecimento rápido, há décadas que o sector da habitação tem sido abandonado ao livre arbítrio das forças de mercado (que o mesmo é dizer ao mero interesse do lucro dos sectores financeiro e da construção) com consequências, como a do êxodo das populações mais jovens e de menores recursos para as periferias urbanas, a consequente desertificação dos centros urbanos e a sua dependência de uma actividade comercial cada vez menos atomizada e mais frágil aos regulares contraciclos económicos, criando um ruinoso ciclo vicioso que a todos vai condenando a acelerada degradação.
Enquadradas neste cenário crítico e laxista, surgiu agora uma proposta de intervenção governamental com 22 medidas para a habitação que vão do arrendamento e subarrendamento à construção, alojamento local e isenções fiscais, distribuídas por cinco grandes linhas, como o aumento da oferta de imóveis, a simplificação do licenciamento da construção, o aumento da oferta de arrendamento, o combate à especulação e a protecção das famílias.
Este chamado pacote “Mais Habitação” foi naturalmente recebido com críticas por economistas, fiscalistas, arquitetos, investidores e proprietários, muitas das quais até poderão ser fundamentadas e merecidas, o que não pode, e isso foi o que mais se viu e leu na comunicação social, é deturpar-se completamente o sentido e a intenção de medidas como a do arrendamento compulsivo, transformando-a num ataque à propriedade privada e num processo de estatização (nas tonitruantes palavras de Menezes Leitão) que não o é – nesta matéria tendo a concordar com Vital Moreira, quando este aponta (e bem) não para a inconstitucionalidade da medida mas para as óbvias dificuldades da sua aplicação prática –, para não dizer que já há países em que o Estado toma posse de casas para as arrendar (Dinamarca, Holanda e a nossa vizinha Espanha) ou que semelhante ideia já foi aplicada no município lisboeta, com reduzido sucesso.
Esta descabelada polémica (porque levantada em torno de fantasmas e desprovida da adequada fundamentação) em nada contribuirá para uma solução equilibrada do problema. Mais, o acicatar de raivas e ódios apenas beneficiará um status quo onde pontifica o absentismo e um abandono imobiliário particularmente benéfico para a especulação, tal como a recuperação da desgastada estratégia de desencorajar a acção por receio que o beliscar dos investidores não resolva e até possa piorar a falta de casas, mais não é que a preservação dos interesses da banca, da construção civil e da especulação.
E o combate à especulação é precisamente uma das vertentes que o pacote “Mais Habitação” pretende alcançar, mas este flagelo não se limita, como parece sugerir o próprio documento do governo, aos vistos “gold”, nem parece mitigável por via da estabilização das rendas definidas pelo “mercado” ao longo dos últimos cinco anos. Isto poderá ser um passo, mas é um do tipo pequeno, tímido e manifestamente inconsequente.
Em resumo, a proposta governativa, agora em fase de consulta pública, pode ser um primeiro passo no sentido de sinalizar a vontade política de abordar o problema da habitação, mas dificilmente passará disso. Falta-lhe músculo e, principalmente, uma clara manifestação de vontade para afrontar os interesses instalados; mais, a proposta pretende fazê-lo a custos exorbitantes (a diferença entre a renda especulativa garantida ao proprietário e a renda ajustada à capacidade financeira do inquilino) e olha para o património imobiliário em estado de abandono sem criar mecanismos, por exemplo de natureza fiscal, para o resolver. Muito deste património encontrar-se-á nessa situação por razões que vão do imobilismo e desinteresse até à ausência de estratégia e condições dos proprietários (muitas situações dependerão até de acordos entre múltiplos herdeiros), que incapazes de mobilizar o capital necessário à sua recuperação se mostram simultâneamente gananciosos perante qualquer perspectiva de venda.
Por todas estas razões, talvez a maior pecha do programa “Mais Habitação” seja a falta de propostas de acção de natureza fiscal (as que existem são no sentido de isenções fiscais para incentivo ao arrendamento), no sentido de um forte agravamento anual do IMI que force os proprietários de imóveis devolutos a colocá-los no mercado (vendendo ou alugando), a par com a total ausência de uma clara aposta e determinação na construção de habitação social.