O direito de defesa dos ucranianos e o dever de solidariedade europeu contra a agressão imperial russa é inquestionável, e está acima de qualquer negócio ou interesses. Reciprocamente, a luz que necessita ser feita sobre o que aconteceu com os gasodutos do Báltico não pode ser tão pouco negada por qualquer razão.
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O acordo germano-russo
Desde há pelo menos duas décadas, a Alemanha envolveu-se numa estreita relação comercial com a Rússia baseada no comércio de gás, nas posições lucrativas oferecidas a dirigentes políticos alemães por empresas russas, e no fechar de olhos à agressão militar russa em várias direcções, incluindo a ucraniana que, como sabemos, fica entre os dois países.
Com a construção de gasodutos submarinos que contornam pelo Báltico os países que se interpõem entre os dois parceiros, a colaboração germano-russa passou também a ser vista com desconfiança quer pela Polónia quer pela Ucrânia.
Depois da primeira invasão da Ucrânia em 2014, a pressão política ocidental em geral e ucraniana em particular contra a extensão do gasoduto submarino (o chamado Nord-Stream-1 começou a operar em 2011 e nesse mesmo ano foi projectado o Nord-Stream-2 que nunca entrou em funcionamento) aumentou consideravelmente, sem nunca levar, no entanto, as autoridades alemãs a arrepiar caminho.
Há cerca de quinze anos, com a introdução de novas tecnologias de fraturamento hidráulico do subsolo para extração do gás, os EUA passaram de país importador a país potencial exportador. Trata-se de tecnologias de impacto ambiental negativo, o que terá contribuído para que elas não fossem utilizadas entre nós, apesar de tudo apontar para a existência de condições naturais semelhantes de exploração nos dois continentes.
Mesmo a exploração tradicional (sem recurso às tecnologias poluidoras do fraturamento hidráulico) nos Países Baixos extinguiu-se quase totalmente; aqui, em função dos protestos das populações pelos microssismos induzidos por essa exploração, protestos de tal forma importantes que nem mesmo as condições extremas de carestia do gás que enfrentámos no ano passado foram capazes de ultrapassar.
A alteração da posição dos EUA no mercado de gás teve uma grande importância, por exemplo, para o Qatar, que sendo o principal país exportador de gás liquefeito investiu fortemente em estações de regaseificação em território americano, sendo que com a alteração da posição relativa dos EUA, essas estações se dedicaram principalmente ao processo inverso de liquefação. Grupos financeiros como o de George Soros investiram fortemente também no mercado do gás.
Os EUA, que tal como toda a Aliança Atlântica, tinham fortes razões geopolíticas para ver com grande desconfiança a aliança germano-russa do gasoduto báltico, passaram a ter dentro das suas fronteiras (ou fora delas com grande influência no seu interior) interesses comerciais contrários a essa ligação por gasoduto.
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A invasão de 2022
Se os avisos norte-americanos contra a extensão do gasoduto báltico se foram tornando cada vez mais claros, eles tornaram-se impossíveis de ignorar depois do desencadear da invasão do ano passado, levando o chanceler alemão a recusar a certificação do Nord-Stream-2, impedindo assim a sua entrada em funcionamento.
Muito se escreveu sobre as razões que envolveram a invasão de larga escala do território ucraniano. Pela minha parte, tenho defendido a tese de que foi a fraqueza e pusilanimidade demonstrada pelo Ocidente que constituíram o maior incentivo a essa invasão, e não a ameaça que seria uma potencial presença ucraniana na OTAN como a Rússia tem defendido.
Posto isto, de forma que eu não previ – mas que também quase ninguém previu – o lançamento da operação especial do Kremlin saldou-se por um tremendo fiasco, fruto da incompetência dos dirigentes russos, mas sobretudo da determinação e do engenho dos ucranianos e do seu presidente Zelensky.
Se a surpresa foi mais clara para o Kremlin, ela também o foi para o Ocidente, que se preparava para protestar, mas não ripostar contra o Kiev-2022 encarando-o como a sequência do Praga-1968 ou Budapeste-1956.
Posto isto, a Ucrânia não teria resistido sem o subsequente apoio ocidental, de longe dominado pelos EUA, apoio que é também diplomático e que levou a que até recentemente só o Irão e a Coreia do Norte tenham abertamente fornecido armamento ao esforço de guerra russo.
O apoio à resistência ucraniana tem sido, no entanto, cuidadosamente doseado para não ferir as susceptibilidades russas e levando, na prática ao arrastar da guerra e da multiplicação das suas vítimas.
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A sabotagem dos Nord-Stream
A sabotagem de três dos quatro gasodutos da empresa russa Gazprom que decorreu a 26 de setembro do ano passado foi o último e o mais violento dos desenvolvimentos observados nesta guerra do gás.
Quase seis meses depois da sabotagem, abundam as acusações e os argumentos sobre quem foi o responsável por essas acções, mas não existem publicamente quaisquer resultados de investigações na matéria.
O jornalista norte-americano Seymour Hersh – que se tornou famoso no jornalismo com a divulgação do massacre de My Lai no Vietname e os abusos prisionais de Abu Ghraib no Iraque – acusou directamente os EUA de serem os responsáveis pela sabotagem. A imprensa oficial americana recusou-se a publicar o original da notícia, sendo que a administração norte-americana a negou em bloco sem sustentar o desmentido em contra-argumentação.
Enquanto a pressão aumenta para fazer luz sobre o que se passou nos gasodutos do Báltico, é essencial ter em conta que uma coisa são os negócios e os interesses que tão frequentemente estão por trás das acções dos representantes do Estados, e outra coisa muito diferente são os direitos fundamentais dos seres humanos.
O direito de defesa dos ucranianos e o dever de solidariedade europeu contra a agressão imperial russa é inquestionável, e está acima de qualquer negócio ou interesses. Reciprocamente, a luz que necessita ser feita sobre o que aconteceu com os gasodutos do Báltico não pode ser tão pouco negada por qualquer razão.