Quem acompanhe a realidade internacional, além das grandes manchetes da comunicação social, já terá começado a vislumbrar que uma reorganização multipolar do mundo é inegável e inevitável. A realidade está além de um simples confronto dos EUA com a China e mesmo quem fala de uma polarização Leste-Oeste está normalmente a referir-se à mesma dualidade, apena sob outra designação.
Os especialistas ocidentais centram os seus comentários ora numa guerra EUA-China, ora no anúncio do fim da China, talvez na expectativa de levar o investimento ocidental a abandonar o Império do Meio, mas esquecem que contrariamente ao propalado pelos dirigentes políticos ocidentais essa mudança não se poderá traduzir num retorno aos territórios de origem, local onde essa reindustrialização enfrenta inúmeras dificuldades de natureza financeira, ambiental e social. Os custos dessa nova deslocalização obrigam à escolha de outro destino em tudo igual ao que levou à sua prévia orientação para território chinês.
Agora, como então, o que as grandes multinacionais procuram é uma economia com forte potencial de crescimento, uma regulamentação fraca ou facilmente manipulável em seu benefício e vastas quantidades de mão-de-obra barata e dócil. Neste cenário o alvo preferencial pode muito bem ser a grande e populosa Índia.
Parece assim inevitável que estamos em vias de assistir à repetição do processo iniciado na década de 1990 que levou à rápida industrialização da China e a assistirmos nos próximos anos à transformação da Índia de poder regional em poder global, arrastando o resto das economias emergentes no seu encalço e obrigando ao reconhecimento geral da nova realidade que será a formação de um novo mundo multipolar, com o senão deste processo poder originar muito maior instabilidade, seja pelas contradições e clivagens internas, seja pelas inevitáveis tentativas ocidentais para torpedear o processo, seja pelo recrudescimento das óbvias tensões com o seu vizinho chinês.
Á explosão do “made in China” deverá seguir-se a do “made in India”, em consequência de uma estratégia anglo-saxónica alimentada por uma política anti-chinesa que atrairá um bom número de empresas que ali repetirão o processo de transferência de ganhos para o Ocidente, tanto maior e mais fácil quanto a economia indiana apresenta já taxas elevadas de crescimento e a sua nomenclatura se encontrará ainda mais permeável aos cantos de sereia dos capitais ocidentais que a congénere chinesa.
A confirmar-se esta tendência, o próximo ano deverá constituir a primeira etapa nesse sentido com a realização de eleições na Índia e em vários outros países (EUA, Rússia, África do Sul, Indonésia, Coreia do Sul, Taiwan, Turquia, entre outros) que representando uma parte significativa da população mundial poderão originar alterações nas relações de força. Para já perspectiva-se, naquele país, uma fácil vitória do actual primeiro-ministro, Narendra Modi, que concorre ao seu terceiro mandato como líder do BJP (Bharatiya Janata Party ou Partido do Povo Indiano, é um partido político da Índia fundado em 1980, um dos dois principais partidos indianos, a par com o seu grande rival, o Congresso Nacional Indiano; de tendência conservadora, mas defensor de políticas económicas liberais é, desde 2019, o maior partido político do país em termos de representação parlamentar) e em coligação com o NDA (centro-direita) detém a maioria absoluta no parlamento indiano.
Tudo indica que, sob a liderança de Modi, a Índia se dirija para a vanguarda do cenário geopolítico mundial como contrapeso ao poder chinês, mas a grande dúvida sobre a sua real eficácia prende-se com as suas reconhecidas assimetrias. A Índia é um vasto território com um grau crescente de urbanização, mas com graves disparidades sociais (continua a imperar um sistema rígido de castas), linguísticas (o número de línguas e dialectos ultrapassa os 1.500), religiosas (embora quase 80% dos indianos seja hinduísta, existem ainda budistas, jainistas e siques, além de cerca de 15% de muçulmanos e de 2% de cristãos) e de alfabetização (Biar, o estado menos alfabetizado, apresenta uma taxa inferior a 50% quando o mais alfabetizado, Kerala, ultrapassa os 90%), factores que em conjunto com as assimetrias económicas fazem da Índia um dos países com maiores desequilíbrios na distribuição da riqueza (Kerala, por exemplo, é um dos estados mais desenvolvidos em termos económicos e culturais e de maioria muçulmana, enquanto Biar se encontra entre os mais pobres e atrasados e é maioritariamente hindu) o que gera frequentes tensões entre as regiões e os seus naturais.
Em contrapartida o Ocidente precisa de garantias sobre a compatibilidade com uma Índia renovada – o que não será fácil pois esta continua a apresentar-se como uma figura emblemática do espírito de não-alinhamento (o termo “não-alinhamento” surgiu em 1954, na Conferência de Bandung e pela iniciativa indiana de Nehru) e o actual chefe de governo, o nacionalista Narendra Modi, não foge a esta regra e tem o cuidado de continuar a tentar manter boas relações com o Ocidente, a Rússia e até a China, apesar do nacionalismo indiano manter um forte sentimento anti-chinês e o recente conflito na Ucrânia estar a condicionar fortemente o princípio do não-alinhamento – a menos que surjam novas correntes políticas, do tipo movimentos pró-ocidentais influenciados pela remanescência da Commonwealth, próximos da Inglaterra de Rishi Sunak e da diáspora indiana, capazes de influenciar a Índia a alinhar com os interesses ocidentais.