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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Inflação e lucros

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

A inflação mostra-se mais resistente do que os bancos centrais esperavam quando os preços começaram a subir há cerca de dois anos e parece cada vez mais evidente que as empresas estão a aproveitar a oportunidade para aumentar as suas margens de lucro.

Os números do Eurostat mostraram que os preços ao consumidor na zona do euro estavam 7,0% acima de Abril do ano anterior (inflação homóloga), ligeiramente acima dos 6,9% registados em Março e mais do triplo da meta do Banco Central Europeu (2%). No entanto, a taxa básica de inflação – que exclui preços de alimentos e energia – caiu para 5,6% em Abril, depois do máximo de 5,7% registado em Março.

Apesar dos aumentos das taxas de juros decididas pelos bancos centrais, que foram mais longe e ocorreram mais rapidamente do que em qualquer outro momento desde a década de 1980, as taxas de inflação também permanecem desconfortavelmente altas nos EUA e em muitas outras partes do mundo.

E se, face aos primeiros aumentos de preços em reacção à quebra nas cadeias de distribuição provocadas pela Covid-19 e aos estrangulamentos de energia, alimentos e matérias-primas resultantes da guerra na Ucrânia e da política de sanções decidida pelos EUA, houve boas razões para criticar desde a primeira hora a opção por uma política monetária restritiva (traduzida no aumento dos juros para reduzir a oferta de moeda em resposta a uma inflação que não era gerada pelo excesso da procura, mas sim pela quebra na oferta de bens e serviços), que dizer agora quando se constata a existência de claros sinais de que as empresas estão a aumentar os preços acima do necessário para cobrir o aumento dos seus custos.

Ao longo do tempo fomos ouvindo os habituais discursos de pendor neoliberal e monetarista, sobre a necessidade de contenção dos salários para não agravar ainda mais a inflação, mas agora perante a evidência que o aumento dos lucros (e não o aumento dos salários) foi o principal factor que alimentou a inflação durante o segundo semestre do ano passado, já se ouviu alguma crítica ou proposta de solução diferente?

Este entorpecimento das mentes, alcançado através da repetição contínua e sistemática de axiomas duvidosos ou falsos, estará na origem desta e de outras apatias e poderá até ser uma parte da explicação para a quase absoluta falta de reacção dos consumidores a este período de alta de preços que, contrariamente ao expectável não se tem traduzido numa assinalável redução na procura de bens e serviços, nem numa significativa alteração nos padrões de consumo.

E se a reconhecida inelasticidade da procura por bens de consumo básico poderia explicar uma parte daquela apatia, outra dever-se-á à natural reacção às medidas de confinamento decididas para conter a pandemia e à generalização da narrativa que lança toda a responsabilidade sobre a situação de guerra na Ucrânia, algo facilmente refutado pela mera constatação de que a subida de preços antecedeu em mais de um ano aquele conflito.

Bom exemplo desta realidade é a notícia que uma multinacional do ramo alimentar, a Nestlé, viu as suas vendas crescerem 8,3% no mesmo período em que aumentou os seus preços em 9,8%; este e outros factos levaram a ONG Greenpeace a denunciar abertamente as multinacionais do negócio alimentar por práticas injustas e deveria ter recuperado para tema de informação e debate a questão dos lucros excessivos, mesmo quando grandes figuras nacionais (como Vítor Bento, o presidente da Associação Portuguesa de Bancos) afirmam, sem pejo nem vergonha, que desconhecem o que são lucros excessivos.

Mesmo sendo verdade que grande parte do aumento nos preços dos alimentos desde meados do ano passado resultou de custos mais altos, principalmente os custos com a energia – factor de que a maior parte da produção de alimentos é bastante dependente –, esse é um cenário já ultrapassado, agora que aqueles custos estão a estabilizar, como o demonstra a evolução da inflação na rubrica Energia, entre Setembro de 2022 e Abril deste ano.

A realidade (comprovada pelos dados estatísticos disponíveis) é que a opção pura e deliberada de aumentar as margens, e não a mera cobertura do aumento dos custos, parece ser uma das razões pelas quais os preços dos alimentos continuaram a subir rapidamente. E isto é tanto mais fácil e simples quanto menor for o número de intervenientes no mercado.

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