Um capítulo de livro
Na origem do escândalo que tem feito com que nos últimos meses se fale de Boaventura Sousa Santos, doravante Boaventura, e do Centro de Estudos Sociais, doravante CES, está a publicação pela Routlege, na Grã Bretanha e nos Estados Unidos, no corrente ano de 2023, de um livro intitulado Sexual Misconduct in Academia: informing an ethics of care in the university “edited by Erin Pritchard and Delyth Edwards”, em que a 12 ª e última parte é constituída pelo texto “The walls spoke when no else would: Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant – garde academia” subscrito por Lieselotte Viaene, belga, Catarina Laranjeiro, portuguesa, e Miye Nadya Tom, americana, mais exactamente native american(i).
Nestas notas “autoetnográficas” as autoras partiham uma experiência comum num centro que se percebe ser o CES e identificam-se pelas suas posições institucionais na época em que estiveram com ele envolvidas: Former National Ph.D. Student, Former Post Doctoral Researcher e Former International Ph. D. Student. Do mesmo modo Identificam três pessoas com responsabilidades no CES, que, recorde-se, é uma entidade de direito privado com estatuto de associação, com o estatuto de laboratório associado, também pelos seus papéis: Star Professor, que se percebe ser Boaventura, Apprentice,(ii) e Watchwoman. Falam de extractivismo sexual em relação a jovens mulheres que, num ambiente de precariedade, procuram realizar investigação e de extractivismo intelectual. Pelo menos relativamente a duas das autoras são referidas situações de conflito, uma das quais levou a cessação formal do contrato. Pode ser discutido se o artigo, ou melhor, a “parte de livro” em causa é um texto científico mas os organizadores do livro, que está subordinado à temática indicada, aceitaram inclui-lo e, ao encerraram o livro com ele, deram-lhe uma posição de destaque.
Foi no Público que eu próprio encontrei o link para esta parte de livro e parece-me que seria útil que quem se pretenda pronunciar sobre o assunto em vez de papaguear referências a ele ter sido publicado por uma prestigiada editora internacional ou pensar que se trata de uma editora de escândalos que pretende aumentar as vendas, faça, antes de mais, o download.
Julgo evidente que não se trata de uma publicação que, com propósitos exclusivamente académicos, incorpora por acidente referências a Boaventura e ao CES, mas acho um tanto redutor ver o acontecimento como uma ofensiva de “direita” ou até como o produto de uma operação da CIA para minar o prestígio de Boaventura no continente americano e noutras partes do mundo(iii), tanto mais que a cadeia de reacções subsequente à publicação do livro suscita alguma perplexidade.
Pessoalmente, não me tenho emocionado com o movimento Me Too(iv), não percebo que se tem exactamente passado na Faculdade de Direito de Lisboa, etc, mas em todo o caso julgo ainda ter, da minha experiência como docente do ensino superior a tempo parcial entre 1976 e 2010, uma noção sólida sobre coisas que não se fazem.
E em meu entender este não se fazem não deve constar, ou não deve constar apenas, de códigos de conduta das instituições, cuja capacidade de produção normativa é questionável, mas de diplomas quadro das actividades docentes e de investigação e inclusive dos estatutos de carreira aplicáveis.
Reacções no CES e noutros espaços
Sendo evidente que a parte de livro publicada dizia respeito ao CES e a Boaventura, este, elevado a Director Emérito vitalício, e o “Aprendiz” logo anunciaram a intenção de colocar uma acção judicial contra as autoras. Todavia o Conselho Directivo do CES e o seu Presidente demarcaram-se publicamente de tal intenção e anunciaram a intenção de promover a constituição de uma comissão independente de três membros – a Provedora do CES e dois elementos exteriores a este, para fazer uma avaliação das imputações. Pouco tempo depois é anunciado que Boaventura e o “Aprendiz” ficariam suspensos até a comissão independente apresentar as suas conclusões. A suspensão que ficou na dúvida – para mim – se se inseria ou não numa intenção de facilitar as averiguações, parece ter contribuído para moderar as reacções.
O Conselho Diretivo do IHC (Instituto de História Contemporânea) onde trabalha Catarina Laranjeiro, única portuguesa entre as três autoras, publicou um rasgado elogio, tanto pessoal como académico, à sua investigadora, o Bloco de Esquerda de que alguns quadros foram professores da Faculdade de Economia de Coimbra ou se formaram academicamente no CES e que Boaventura se permitiu por duas vezes criticar publicamente por excesso de radicalismo (perdendo de ambas as vezes muitos votos e o seu deputado por Coimbra) anunciou um projecto de lei de carácter genérico, surgiu um manifesto que reuniu 300 assinaturas sob a palavra de ordem Todas Sabemos s (v) que se orientou sobretudo para a necessidade de discussão. Todavia o Conselho Directivo do CES promoveu uma reunião de investigadores, posteriormente à qual foi divulgado que iriam ser promovidas eleições para todos os órgãos do Centro.
A selecção dos dois avaliadores externos arrasta-se, Boaventura protesta contra o atraso e reivindica ter sido sua a decisão de suspensão. Não duvido que Boaventura venha a readquirir o controlo total dos órgãos do CES mas em todo o caso tomei nota de que de modo geral nos artigos publicados por alguns “históricos” a preocupação dominante é com o futuro da instituição, não se dizendo por exemplo que Todos Sabemos que o fundador é vítima de atoardas sem qualquer fundamento. Quanto ao “extractivismo intelectual” julgo que a comunicação social não identificou correctamente todas as práticas que as autoras pretenderam abranger.
Abuso e sedução
Uma das referências feitas pelas autoras do trabalho “autoetnográfico” diz respeito a um caso que há nove/dez anos teria envolvido uma jovem doutoranda estrangeira cuja história fui detalhada por exemplo no Público ainda sem identificação, a qual, depois de alcançar uma bolsa de doutoramento em Portugal no prestigiado CES com o prestigiado Boaventura como orientador e encontrando-se acompanhada em Coimbra por um colega na altura seu namorado se terá visto assediada sexualmente pelo seu orientador, chamemos-lhe agora B, pois que se trata de um relato da própria, ou do que dele percebi, sendo que B, numa reunião marcada para casa deste, lhe terá chamado a atenção para a importância que teria para ela o terem um bom relacionamento. Não tendo tido uma reacção positiva, na reunião seguinte com a jovem doutoranda e o seu namorado, B. terá desferido uma crítica fortíssima a este, a propósito de um trabalho feito em comum, sucedendo-se aparentemente, a um episódio de assédio sexual(vi) não aceite, um episódio de assédio moral.
A jovem – 25 anos – terá pedido mudança de orientador e acabou por regressar ao Brasil, onde arranjou trabalho e fez o seu doutoramento sem bolsa, não denunciando publicamente a situação – em Coimbra ter-lhe-ão dito que B. era brilhante mas se sabia que aconteciam coisas destas – a qual terá sido apenas discutida no Brasil com a sua mãe e com o partido de esquerda de que era e é activista, e que tinha o trabalho de Boaventura como sua referência teórica. B ter-lhe-á pedido desculpas em Coimbra, visando sem sucesso restabelecer a relação como orientador, e mais tarde numa ocasião em que se deslocou ao Brasil, justificando-se com o estar apaixonado.
Terá sido a reação de negação de Boaventura ao livro publicado este ano e as suas ameaças de processar as autoras que levaram a protagonista a revelar a sua identidade: Bella Gonçalves, activista do PSOL, que nas últimas eleições foi eleita deputada estadual em Minas Gerais(vii). Uma nota da parte de quem seguido esta novela e a forma como o jornalista Samuel Silva, do Público, tem procurado, como é seu timbre, fazer um acompanhamento rigoroso do que dizem as fontes: o Provedor do Leitor, José Alberto Lemos, considerou que o jornal deveria ter valorizado mais o depoimento de Bella Gonçalves quando esta decidiu revelar a sua identidade, sem deixar aliás de prezar os contributos teóricos de Boaventura e o seu impacto político.
A cobertura do “caso Boaventura” (parte II)
Por mim, concordo com o Provedor.
Entretanto foi lançado para o debate no Facebook e talvez em outras redes, no contexto deste caso, um contributo aparentemente “relevantíssimo”: a Ministra da Ciência e Ensino Superior, Elvira Fortunato, havia casado com o professor catedrático que era seu orientador de tese de doutoramento.
Será que se pretendia dar a entender: “Estão a ver até onde é que elas vão para progredirem na vida académica ?” ou até “Se és catedrático não deixes de tentar a sorte!“?
Cabe admitir que, como aliás é comum em meios profissionais, se encontram por vezes no meio académico situações em que um casal se constitui numa base de interesses profissionais partilhados, designadamente científicos. Conheço casos em que, não interessando quem seduziu quem, a ligação estabelecida se revela sólida, na base do reconhecimento mútuo do valor de cada um, embora o homem, mais entrosado no exercício do poder, tenda a criar condições para promover o progresso profissional da companheira, e até, se mais idoso, a sua sucessão por esta em todo um conjunto de oportunidades que constituíram o seu capital.
No entanto o B. “apaixonado” por Bella Gonçalves não recebeu qualquer encorajamento por parte desta, muito embora a “troupe” dos seus partidários até o venha defendendo por aí sem instruções: no Fb li uma “senhora”, digna de ter pertencido às “mães de Bragança”, sugeria ter sido a “brasileira” que se “atirou” ao seu orientador, quase 50 anos mais idoso, e um “senhor” perguntou-me se PSOL não era o partido do Jair Bolsonaro? Se isto é esquerda …
Ao “apaixonado” recordo que o que terá feito – se o fez – entra nas coisas que não se fazem. E que se realmente tem outros episódios na sua consciência – não sei nem tenho especial interesse em saber – o seu pedido de desculpas quase parece um “não me denuncie”. Espero que a deputada mineira não se venha a arrepender de ter contado a sua história.
Presunção de inocência
Para quem não conhece os factos nem as pessoas a opção pela presunção de inocência é a mais segura, até porque se trata de uma causa em que não temos de ser efectivamente juízes. Importa ter presente contudo que neste tipo de situações a acção penal depende de queixa e os prazos para as formular estarão ultrapassados.
Já Boaventura e o “Aprendiz” estão à vontade para se queixarem, ainda estão dentro do prazo.
Os Sindicatos
Os sindicatos de professores e investigadores não são Ordens, muito embora pudessem incluir, creio, na sua organização interna, normas que sancionassem comportamentos atentatórios das exigências da profissão. Têm contudo acesso à uma comunicação social que procura avidamente as suas afirmações.
Vi o que escreveu em artigo no Público André Carmo, dirigente da FENPROF, que aliás subscreveu o manifesto Todas Sabemos. Percebo que a sua sensibilidade lhe indique que as Universidades sejam um espaço mais propício à ocorrência de certos tipos de situações que os Institutos Politécnicos, o que até é confirmado por terem surgido logo a seguir denúncias de casos concretos nos Institutos Politécnicos do Porto e de Coimbra, com imediata acção disciplinar.
O Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup) surgiu no espaço de opinião do Público com um texto de alguém que foi membro da sua Direcção nos primeiros onze anos, e até Presidente desta, e que não se mostrou nada favorável ao apontamento sobre o CES. Também o actual Presidente da Direcção – que se intitula Presidente do Sindicato – reporta que no apoio jurídico têm tratado casos de assédio moral mas não de assédio sexual.
O que não é dito é que dada a estrutura etária dos docentes do ensino superior e dos sindicalizados, o peso das mulheres jovens em situação precária não será muito elevado. Não foi dito por exemplo que Boaventura Sousa Santos é um sócio fundador do SNESup, que continua a manter os direitos sindicais depois de aposentado, com direito a advogado do sindicato em caso de necessidade, e que a implantação inicial do sindicato na FEUC passou também por ele.
Em relação aos investigadores a situação é diferente. A Vice-Presidente da Direcção Teresa Summavielle é signatária do Todas Sabemos. A Direcção conta também com uma investigadora do CES – Silvia Maeso e o SNESup tem, já no segundo mandato, uma Comissão Sindical eleita pelos associados investigadores do CES.
É difícil prever o que vai acontecer. Daqui a uns tempos talvez nem nos lembremos de que esteve para haver um caso Boaventura / CES.
Notas
(i) A comunicação social tem referido o nome de uma outra índia, mais a sul, activista mapuche do lado da Argentina e não do Chile, que apareceu a fazer certas imputações de comportamento a Boaventura, que as rejeita energicamente, mas que nunca foi investigadora do CES. Nestas condições, o “caso” não é pertinente para ser tratado no presente artigo.
(ii) O nome do Aprendiz (aprendiz de Professor Estrela…) não me diz nada pessoalmente, uma vez que não conheço o meio, mas o nome de um antropólogo que se assumiu publicamente como ofendido está por aí divulgado.
(iii) Curiosamente o próprio Boaventura ao surgir em Portugal no pós 25 de Abril com a sua formação avançada obtida na norte américa terá sido visto na altura como alguém sob a possível influência da Agência.
(iv) Sobre o caso Ronaldo – Mayorga estou tentado a crer que devia ter ficado encerrado com o acordo inicial, mas a litigância com honorários de contingência é reconhecidamente um factor de desestabilização.
(v) Rapidamente alcançou 800 assinaturas de investigadores e “agentes culturais, nem todos mulheres.
(vi) Se é que colocar a mão num joelho é assédio sexual.
(vii) Única deputada do PSOL neste estado. O PSOL surgiu como dissidência do PT mas tem tido um desenvolvimento nem sempre fácil.