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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Contingente prioritário para candidatos beneficiários de acção social escolar

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Há quase dois anos e meio, mais precisamente no Jornal Tornado de 28 de Maio de 2021, foi aqui publicado um artigo meu sobre “Hostilidade Racial em Portugal” em que contrariava propostas conducentes à criação de “quotas étnico-raciais” de acesso ao ensino superior português em benefício de estudantes “afro-descendentes” a título de reparação do colonialismo português e do seu papel no tráfico de escravos.

Expliquei na altura por que razão não aderia ao raciocínio subjacente àquelas propostas. Basicamente a expansão portuguesa em África terminou com reconhecimentos de independência que deixaram regulados muitos aspectos financeiros e patrimoniais de direito público. Em relação a interesses privados instalados em territórios cuja independência foi reconhecida, foram em muitos casos objecto de declaração de perda de activos por abandono a favor dos novos estados, ou de nacionalização, não se tendo configurado uma situação neo-colonial, ao contrário do que sucedeu com a generalidade das independências reconhecidas na esfera do Reino Unido ou da República Francesa.

Por outro lado, é muito discutível que alguns dos que vêm levantando a questão se possam arvorar em gestores das reparações supostamente devidas pelo tráfico de escravos.

Entretanto, a Constituição da República Portuguesa recusa claramente privilégios com fundamento em considerações de origem étnico – racial.

Por isso escrevi:

 …“aquilo com que a sociedade e o Estado portugueses se devem preocupar é com o apoio aos alunos que tendo capacidade intelectual e hábitos de trabalho para prosseguir estudos após a conclusão do secundário, não o fazem por necessidade de contribuírem para o sustento da família ou de alcançarem um mínimo de estabilidade pessoal, e não com a atribuição de quotas étnico-raciais a título de “reparação” do colonialismo ou de “normalização” das estatísticas.”

Com alguma surpresa, verifiquei que este artigo teve um número elevado de partilhas. A matéria é evidentemente controversa.

Têm sido a este propósito apontadas as experiências dos Estados Unidos da América quanto a exigência de reparações pela escravatura e da Alemanha quanto à compensação das vítimas de massacre feitas pelas suas tropas na sua antiga colónia do então Sudoeste Africano.

Ora nos Estados Unidos da América a situação em nada se assemelha à nossa: os Estados Unidos propriamente ditos assinaram numerosos tratados com tribos índias, que sabiam não estar integradas na sua organização política (e incumpriram muitos deles), mas embora a meio da Guerra da Secessão (em 1863) tenham decidido abolir a escravatura e libertar os escravos, continuaram a ter dificuldade em lidar com os “afro-americanos”.

Ainda antes da Guerra aparecia como viável criar estabelecimentos em África para “repatriar” parte destes afro-americanos o que seu origem por exemplo à criação da Libéria(i) onde durante décadas coexistiram “repatriados”, privilegiados, e naturais, até que os últimos, liderados por um tal sargento Samuel Doe, puseram fim ao domínio dos primeiros. No continente americano a libertação dos escravos fez-se sem refundação da sociedade. Muitos vieram a lutar ao lado do Norte integrados em “exércitos de cor” cujas unidades eram comandadas por oficiais brancos. A rendição do Sul e a “reconstrução” dos antigos estados confederados permitiram que em alguns destes os antigos escravos influenciassem transitoriamente a vida política mas em 1876 o republicano Rutherford Hayes, para conseguir ser declarado eleito presidente, aceitou um compromisso que permitia aos Estados do Sul manter de facto a segregação racial e limitar o direito de voto dos afro-americanos.

Sobretudo a partir de meados do século XX veio a surgir nos Estados Unidos um forte movimento dos Direitos Cívicos cujo desenvolvimento é conhecido. Por existir a consciência de que a discriminação racial não é apenas uma questão de proibições e obrigações foi nesse âmbito implementada a defesa de uma “acção afirmativa” no âmbito do acesso ao ensino superior que envolveu a adesão de múltiplas instituições. O Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos considerou recentemente essas políticas inconstitucionais. Com o voto do seu juiz “afro – americano” nomeado por George H. Bush, o conhecido Clarence Thomas.

O ter a Alemanha aceitado recentemente indemnizar uma tribo do ex-Sudoeste Africano (actualmente Namíbia) que massacrou quando há mais de cem anos detinha aquela colónia, a qual depois da I Guerra Mundial ficou a ser gerida pela União Sul Africana (mais tarde República da África do Sul) em regime de mandato da Sociedade das Nações(ii) talvez possa ser explicado por razões de imagem. A Alemanha considera-se por exemplo desligada de responsabilidades perante a Polónia e a Grécia por factos da II Guerra Mundial…

Regressando ao acesso ao ensino superior português terá sido colocada sobre a mesa a proposta de criação de quotas étnico-raciais.

Presidente do CRUP

Veio no entanto a ser avançada uma possibilidade: a criação de uma via especial de acesso para alunos de escolas situadas em Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), isto é com dificuldades que efectivamente podem estar associadas à composição étnica dos alunos e/ou as condições sócio – económicas das suas famílias. O Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), disse-se, estaria disposto a viabilizar esta hipótese.

No entanto o Ministério da Ciência e do Ensino Superior que tem tido de trabalhar com o Ministério da Educação a problemática do acesso ao ensino superior veio a desenhar corria já o ano de 2023 uma outra solução:

  •  seria instituído um contingente prioritário para alunos beneficiários (no último ano do secundário) do escalão A da Acção Social Escolar;
  • poderiam concorrer a todos os cursos de todas as instituições de ensino superior públicas com vagas no Concurso Nacional de Acesso de 2023, correspondendo as vagas deste contingente prioritário a “2 % das vagas fixadas para a 1.ª fase ou duas vagas”, excepto o Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa que determinaram vagas ao abrigo do novo contingente apenas para alguns cursos.
Ministra do Ensino Superior

Tratando-se de um contingente prioritário e não de uma “quota”, designação que a Ministra expressamente excluiu, os colocados ao abrigo deste contingente ou de outros contingentes prioritários (anteriormente designados por “especiais”) estes candidatos não irão prejudicar o preenchimento de vagas normais.

As notícias publicadas sobre a 1ª fase de colocações dão conta de que muitos alunos elegíveis pelo critério do escalão da Acção Social Escolar terão entregue a candidatura on line sem assinalar que pretendiam ser abrangidos pelo contingente.

Importará entretanto perceber se todos os interessados terão formalizado a matrícula, uma vez que a concessão de bolsa este ano era imediata.

De modo geral, já que esta política foi enquadrada numa experiência reunindo políticas de vários países europeus, o que lhe garante financiamento e avaliação, podemos contar com que o seu desenho e execução sejam convenientemente escrutinados.

Aos que entraram no ensino superior por esta porta, os meus parabéns e os meus desejos de que tenham o máximo apoio por parte das instituições e dos colegas.

 

Notas

(i) Esta experiência é. referida no final de “A Cabana do Pai Tomás”.

(ii) Sucedida pela Organização das Nações Unidas.

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