Na terça-feira, 31, o senador Jacques Wagner, líder do Governo no Senado, cortou um dobrado na Comissão de Assuntos Econômicos para evitar que seus pares aprovassem um projeto estabelecendo como de execução obrigatória as emendas de comissões. Wagner conseguiu adiar mas não ainda barrar mais esse avanço do Congresso sobre o Orçamento da União. Em miúdos, o projeto era mais um passo para ampliar o poder do Legislativo e reduzir o poder do presidente da República.
O Brasil vem assistindo, com cara de paisagem, a uma marcha para a mudança do sistema de governo sem a realização de novo plebiscito ou a aprovação de uma PEC neste sentido, que alguns dizem não ser possível. Há quem entenda, inclusive no Supremo, que depois da confirmação do presidencialismo no plebiscito de 1993, só com outra consulta popular o sistema de governo pode ser alterado. Mas, na prática, isso vem acontecendo, com a adoção de um regime semi-presidencialista ou semi-parlamentarista, sem primeiro-ministro e desprovido de outros mecanismos do parlamentarismo, como a dissolução da Câmara e o chamado de novas eleições em determinadas situações de crise.
Foi sobre isso que perguntei ao presidente Lula no café/entrevista de sexta-feira, 26 de outubro. Ele preferiu justificar a entrega da CEF e de outros cargos aos aliados dos partidos que compõem sua base de apoio: isso é próprio da democracia, o governo é que precisa do Congresso e não o contrário, disse ele. Lembrou que precisava dos 100 votos que lhe foram garantidos por partidos como PP, União Brasil e Republicanos. No lugar dele eu teria dado a mesma resposta mas como jornalista e analista política eu quis perguntar sobre algo que ultrapassa o mero fisiologismo. É verdade que desde Sarney o toma-lá-dá-cá é praticado mas a diferença é que, nos últimos tempos, o Congresso está cada vez mais poderoso e agora avança até contra o STF.
Na resposta, Lula até deu um aviso aos que, pela esquerda, criticam as concessões: “presidente não pede impeachment de deputado mas deputado pede impeachment de presidente”. Ou seja, ele sabe muito bem dos riscos que corre um presidente minoritário e não irá vacilar.
Mas o problema que aponto vai além do fisiologismo inescapável.
O empoderamento do Congresso vem se dando em três vertentes: o controle cada vez maior do orçamento, a limitação do uso das medidas provisórias e a tomada de iniciativa cada vez mais frequente em matéria de políticas públicas, pelo Legislativo. Foi-se o tempo em que o Executivo ditava a agenda parlamentar.
Em relação ao orçamento, quando fustigava Dilma com Eduardo Cunha presidindo a Câmara, o Congresso impôs a obrigatoriedade da liberação das emendas individuas. A elas são destinados 1% da Receita Corrente Liquida, e isso correspondeu, no orçamento de 2023, a R$ 11,7 bilhões. Cada parlamentar ficou com o direito de apresentar até 25 emendas no valor global de R$ 19.704.897. Metade tem que ir para a Saúde mas o resto pode ser pulverizado a bel prazer. Ou melhor, ao sabor do interesse eleitoral de cada um.
No governo de Temer, um presidente fraco pela origem golpista de seu poder, o Congresso impôs a liberação obrigatória das emendas de bancada, destinando recursos aos estados pelos seus parlamentares em conjunto. Em 2023 elas somaram R$ 7,6 bilhões e cada bancada levou R$ 284 milhões.
Bolsonaro, depois de se entregar ao Centrão, aceitou o Orçamento Secreto que lhe permitiu sobreviver, aprovar sua agenda e escapar dos tantos pedidos justificados de impeachment. Eram as emendas de Relator, camufladamente rateadas entre os aliados. Somavam R$ 19 bilhões para 2023, mas Lula, uma vez eleito, e com a ajuda do STF, que já condenara o mecanismo, fez um acordo. O Congresso ficou com a metade e assim engordou as emendas individuais. A outra metade ficou para o Governo, que até hoje está liberando emendas com essa origem.
Agora o Congresso quer tornar impositivas as emendas de comissão, quer criar as emendas de liderança (para cada partido) e ainda fixar um calendário para a liberação de todas elas. O governo sequer poderá fazer a liberação na hora da busca de votos.
Em outra frente, cada vez o presidente da República consegue menos eficácia legislativa com as medidas provisórias. Até Fernando Henrique, praticamente todas eram convertidas em lei. Depois houve a mudança do rito pelo STF, e veio o decurso de prazo após 120 dias da edição. Hoje, o Congresso nem precisa rejeitá-las. Basta deixar que caduquem após este prazo. Segundo levantamento da Action Consultoria, no primeiro ano de seu segundo mandato, Lula converteu em lei 85,7% das que editou. Dilma, no primeiro mandato, 77,78% e no segundo 79,07%. Temer, apenas 50,98% e Bolsonaro, 40,35%. Lula, até agora, 71%, mas a tendência é mesmo decrescente.
Com a disputa Câmara x Senado sobre o tema, cada vez mais o Governo recorre a projetos de lei com urgência constitucional para suas matérias.
Desde Dilma, o Congresso tomou gosto por “pautar o debate” político. Ou seja, passou a aprovar mais e mais propostas de sua própria iniciativa. Para ficar só nos casos recentes, temos o marco temporal, a desoneração da folha das empresas, as tentativas de proibir o casamento homoafetivo e não permitir qualquer tipo de aborto. E agora também a PEC do Senado que limita os poderes do Supremo.
Se Lula não pode escapar do jogo, a sociedade pode, no mínimo, pressionar mais o Congresso, exigindo que as pautas de seu interesse sejam debatidas e incluídas na agenda parlamentar. Isso não tem acontecido. Longe se vão os tempos em que os corredores das comissões estavam sempre lotados de grupos de pressão popular.
E devemos olhar esse quadro nos perguntando se queremos a manutenção do presidencialismo, confirmado pela vontade popular em 1993, ou o regime de Lira, Pacheco e companhia, o semi-presidencialismo em que o presidente da República, eleito pela maioria de votos, é despojado de parte de seu poder.
Texto original em português do Brasil