A reabilitação é comumente associada a clínicas de tratamento para pessoas com determinados tipos de dependência, como o álcool, substâncias psicotrópicas, sexo, doenças mentais, entre outros. Em alguns meios de festas excêntricas e alucinadas, com misticismos de psicadelismo, de deboche acentuado, de luxúria incomparável, não faltam os exageros e o descontrole de tantas e tantos que se entregam aos excessos tóxicos de substâncias legais e ilegais e de comportamentos moralmente questionáveis, mas animalescamente desejáveis.
De festa em festa, alguns vão caindo e começa-se a notar a sua ausência até que o rumor e a certeza do que se passa caem nos ouvidos dos que se mantêm de pé e inabaláveis. O Francisco Azinhaga havia desaparecido depois de ter saído directamente da última festa para as Urgências com sinais de mais um coma alcoólico. Estava a fazer tratamento numa Unidade de Reabilitação para alcoólicos.
Quando saiu, era o mesmo Francisco, com melhor aspecto, arranjadinho, sem baba a cair-lhe pelo rosto e sem hálito matador de bichos invisíveis. Ah, isto é que é reabilitar uma pessoa, pensei eu. Diferente por dentro, melhor por fora, igual, mas com melhor aspecto. Ao passar pela D. Clara, mãe do Pedro, amigo de infância, conhecido como Pedro Aspirador, perguntei-lhe que era feito do Pedro. A mãe lá me disse, com as lágrimas a fugirem dos cantos dos olhos e a rebolarem pela sua face, os lábios tremendos e descaindo, que “O Pedro está em casa. Passou um mau bocado, a maldita da droga ia-lhe arruinando a vida, menino, mas agora está bem, está comigo.” Fui ver o Pedro aspirador, subi a casa da mãe e ali estava ele, o Pedro, já não aspirava, já não sofria de hemorragias nasais, já não ficava acordado a dançar descontroladamente até ser corrido de bares e discotecas. Era um Pedro bem composto, estava a ler, cumprimentou-me, estava limpo há dez meses, não cheirava a vomitado, não tinha a camisa manchada, estava calmo. Isto sim, era uma boa reabilitação, tinha saído do Centro há uns bons meses, era o Pedro de outros tempos, igual, mas melhorado de aspecto, parecia tão novo como há muitos anos, sem dúvida.
Num dia destes, de ventania feroz arrastando folhas de árvores pelo ar, mais parecendo um mini-tornado que se desenvolvia à minha frente, veio bater-me no focinho uma página central de um jornalixo que quase me asfixiava. Desenvencilhei-me com esforço e dificuldade dessa página malcheirosa, o jornalixo cheira a pus e a excremento seco de galinhas que devem limpar a cloaca a essas páginas desses jornais durante a sua impressão.
Como o vómito estava iminente, arranquei-a da minha cara e ia deitá-la ao chão quando reparo na notícia: “Ricardo Von Haff sai de clínica de tratamento para adição em sexo.” Bem, o sexo é sempre um tema interessante e, então, decidi pôr a mola que anda sempre comigo no nariz (faço-o frequentemente por causa do odor a latrina que se sente em muitas situações e em muitos locais, até quando estou em casa a ver televisão) e li a notícia. Havia uma foto do Ricardo Von Haff antes de entrar na Clínica e outra depois de sair.
Segundo a notícia, essa figura mediática (não a conhecia, mas devia ser) tinha comportamentos sexuais descontrolados e excessivos, participava em “órgias” (gosto da palavra “órgias”, parece-me melhor do que “orgias” por me lembrar os Bórgias, a Lucrécia Bórgia, os escândalos sexuais dessa família, a fama sombria e lúbrica, o nepotismo, os enormes bacanais com dezenas de mulheres que satisfaziam os apetites sexuais do cardeal Bórgia) e, acabado o tratamento ao vício do sexo, estava de volta a casa, recuperado dessa adição e aparecia ele de sorriso aberto ao lado da sua esposa, que tinha uma expressão séria sem dentes.
O Ricardo Von Haff estava com bom aspecto, estava até com melhor aspecto nesta foto actual do que naquela em que fora fotografado enquanto tarado sexual (a expressão da mulher inquietou-me: se um ex-alcoólico não pode nunca mais na vida tocar em álcool, se um ex-toxicodependente não pode tocar mais em drogas, será que um ex-adicto em sexo não pode mais… Coitada da mulher, Ricardina Mascarenhas e Mello, se bem que com aquele corpinho e aquela carinha…). Não sei se lhe posso chamar bom aspecto ou melhor de aspecto, mas diferente, muito diferente a Sílvia e confesso que não consigo dizer se fez bem ou mal. A Sílvia Torrinha, ou melhor, a Torrona para os amigos (por ser marrona e de nada lhe ter adiantado), conseguira um segundo prémio no Euromilhões no valor de algumas centenas de milhares de euros. Não ficáramos amigos, mas conhecíamo-nos da zona. A Torrona tinha desaparecido, há muito que não a víamos nas redondezas e, claro, a notícia espalhou-se, sem grandes certezas, mas com indubitáveis garantias de verdade. A Sílvia tinha ido para uma Clínica de Reabilitação nos Estados Unidos para tratar a dependência ao jogo. Depois de receber centenas de milhares de euros do segundo prémio do Euromilhões, a Torrona começou a estourar milhares em raspadinhas. Parecia que frequentara quiosques, bombas de gasolina, papelarias, estações dos CTT, qualquer loja onde houvesse raspadinhas, teria até desenvolvido uma tendinite nos tendões dos dedos indicador e polegar de tanto raspar o jogo do povo. Na verdade, só parecia, pois ninguém tinha notado nas lojas circundantes tal situação e, se tivessem, a Sílvia, em vez de Torrona, passaria a ser Sílvia Raspona.
Pois bem, a Sílvia voltou dos Estados-Unidos, mas não veio reabilitada, veio reconstruída. Aquela história do vício no jogo serviu para esconder a verdadeira missão de Sílvia Torrona: não era reabilitação, fora uma reconstrução. A Sílvia apareceu com uma fisionomia completamente alterada, nem parecia a mesma, nem se pode dizer que tenha sido recauchutada, isso era para pneus de gente de carro de luxo anterior a 2007 até há pouco tempo, pois ela fora, verdadeiramente reconstruída. A Sílvia era outra: tinha implantes de cabelo louro com madeixas matizadas a substituir a sua fraca cabeleira rala e castanha, os olhos tinham mudado de cor, as lentes mudaram-nos de castanho amendoado para azul de águas das Maldivas, o botox alisara-lhe tanto a testa que uma mosca ao lá pousar escorregara, o ácido hialurónico afastara-lhe o bigode chinês do rosto como os Estados-Unidos desejavam que a China se afastasse de Taiwan, o silicone salino dera-lhe bochechas na cara do tamanho de maçãs bravo de Esmolfe, o nariz parecia o da Cher depois de cinquenta rinoplastias, os lábios, por influência de injecções de botox, pareciam duas postas mirandesas, tudo, obviamente acentuado por uma maquilhagem de cores vivas e de produtos para alisar as imperfeições do rosto.
No peito, a timidez das suas maminhas tinha desaparecido e surgiam agora com a pujança retórica oca e falsa de discursos populistas, inchadas e berrando tão alto que se viam (ou melhor, ouviam) a muitos metros de distância; um top curto revelava a secura da barriga, lisa e com a aparência de anos a malhar em ginásios, com muito suor e transpiração, muito sofrimento e privação, a cinta não parecia de vespa, parecia de fim de palito e para baixo, as nádegas pareciam ter sido transplantadas de uma brasileira, assemelhando-se a duas bolas de basquetebol. A Sílvia Torrona fora reconstruída e agora chamavam-lhe Sílvia Boa Zona, a zona que todos os homens desejavam explorar.
Realmente, entre reabilitação e reconstrução há diferenças. Há quem queira equipará-las, mas uma coisa não é a outra. Luís Montenegro, líder do PSD, no âmbito da operação “Vórtex”, que investiga crimes de corrupção na Câmara de Espinho, teria beneficiado de benefícios fiscais dados à obra numa casa antiga que lá adquiriu. O presidente do PSD pediu em carta dirigida ao Presidente da Câmara de Espinho, seu companheiro de partido e futuro vice-presidente da bancada parlamentar do partido laranja, que devia “considerar (…) como obras de reabilitação urbana” a intervenção feita no seu imóvel e comunicar isso mesmo à Autoridade Tributária “para todos os efeitos legais e fiscais”. A Certidão de Reabilitação Urbana que lhe foi atribuída permitiu-lhe a isenção/redução de IMI, IMT e IRS, entre outras deduções em tributos municipais. Um engenheiro civil explicou à SÁBADO que o que aconteceu ali não foi uma reabilitação, mas sim uma obra nova, já que se demoliu a casa que ali existia previamente, pelo que não haveria lugar a benefícios fiscais”.
Assim como a Sílvia Torrona, ou melhor, Sílvia Boa Zona, terá Luís Montenegro iludido todos os que pensavam que ele iria fazer uma reabilitação do imóvel e não uma reconstrução. Se a Sílvia escondeu as suas verdadeiras intenções viajando para os Estados-Unidos, provavelmente o empreiteiro responsável pela obra terá colocado um taipal escuro ou uma rede opaca para que se não descobrisse a verdadeira “reabilitação” desse imóvel antigo. Montenegro não reabilitou nada e deitou tudo abaixo, incluindo a fachada, para se evidenciar um mamarracho moderno no meio de dois belíssimos edifícios de gosto clássico e que preservam a memória de uma Espinho que não se pretende apagar com modernices cosméticas de fachada, não fez a vistoria prévia obrigatória, como manda a lei, e ainda teve a autarquia (do seu amigo Pinto Moreira) a aplicar a lei retroativamente ao seu caso, conseguindo poupar perto de 100 mil euros em impostos, só no IVA por, supostamente, ter “reabilitado” e não reconstruído.
Comovente foi ver Montenegro acenar com um dossier gordo de papelada durante uma conferência de imprensa promovida para clarificar o caso, esclarecido com a exposição do calhamaço sem que ele apresentasse qualquer explicação semântica sobre a diferença entre “reabilitar” e “reconstruir”. Será que um hipotético futuro primeiro-ministro, com a ajuda do “Chega”, não sabe o que distingue um de outro verbo e o seu amigo Pinto Moreira também não?
Não sendo um caso de “reabilitação” nem de “reconstrução”, a privatização dos CTT deveria ter sido uma situação de “manutenção” das obrigações sociais da empresa de distribuição de correios e de serviços postais. Segundo Catarina Martins, ex-Coordenadora do BE, entre 2005 e 2012, a “empresa quando era detida pelo Estado deu um lucro de 500 milhões de euros” e foi vendida por pouco mais de 920 milhões de euros, valor equivalente ao que é exigido para se obter uma licença para constituição de um banco, o que veio a acontecer sem que os privatizados CTT tivessem desembolsado um cêntimo.
Além do dinheiro que deixou de entrar nos cofres do Estado para, supostamente, servir a população e a economia portuguesa, os CTT foram, sem dúvida, “reconstruídos”. Quando nos dirigimos a uma estação dos CTT, só queremos enviar uma carta ou uma encomenda, não queremos comprar raspadinhas, cautelas, livros, kits de escapadinhas, brinquedos para crianças, não pensamos estar a entrar num quiosque nem numa livraria. Não há-de tardar até que os seus funcionários nos proponham se não queremos levar alheiras de Mirandela, leite ou derivados do leite, um queijo amanteigado ou um quarto de presunto, uma embalagem de tofu ou de seitan para vegetarianos.
Enfim, depois de terem criado um banco, não tardará muito a que tenhamos Supermercados CTT: envie uma carta ou encomenda e aproveite os nossos descontos no fumeiro de Vinhais, leve duas embalagens de picanha da Argentina e oferecemos uma raspadinha, compre um “pack” de dez chocolates da marca Nestlé e envie gratuitamente uma carta para um seu familiar na Suíça.
Se ainda podemos ver nascer os Supermercados CTT, já podemos ver morrer as estações de CTT que não dão lucro nem são viáveis nas zonas mais recônditas e desfavorecidas do país, fechando-se postos que durante anos serviram para que muita gente, sobretudo idosos, recolhessem as suas reformas e pensões e recebessem cartas e encomendas de amigos e familiares. Para poupar, transferiram esses serviços para padarias, quiosques, juntas de freguesia, mercearias, enfim, tudo locais especializados e dotados de todas as infraestruturas necessárias para prestar um serviço de qualidade a cidadãos que parece que foram esquecidos por causa da sua interioridade.
A empresa foi privatizada no tempo da Troika, durante o governo de Passos Coelho e Paulo Portas, e, imagine-se, logo na altura foi nomeada administradora dos CTT Céline Abecassis, esposa de… Carlos Moedas, Secretário de Estado de Passos Coelho e responsável pela coordenação do programa da Troika, tendo intervindo na privatização dos CTT.
A esposa de Carlos Moedas, actualmente presidente da Câmara municipal de Lisboa, é uma mulher extremamente dotada e competente, tendo sido administradora não executiva independente da Greenvolt, empresa de energias renováveis, até abril de 2023, integra a administração de várias empresas, como a Vista Alegre ou a CUF, tendo sido também administradora de várias outras empresas, e tendo adoptado o apelido do marido, chama-se agora Céline Dora Judith Abecassis-Moedas. Fica-se com a sensação de alguma similitude com os Bórgias, haverá algum nepotismo, sem se suspeitarem de “órgias”, como é óbvio.
Porém, a actual polémica do jornalixo e do telelixo prende-se com a ligação do BE e do PCP à compra de acções pelo Governo PS, em 2019, dos CTT. De acordo com os famintos órgãos de desinformação e de procura de intrigas estéreis, os dois partidos, BE e PCP, que defendem a nacionalização da CTT para que voltem a servir bem as populações e possam contribuir com milhares de milhões para a “Res Publica”, teriam acordado a compra de acções dos CTT por parte do Governo para viabilizarem o orçamento de Estado.
Ora bem, o Governo PS comprou as acções (ainda ninguém percebeu porquê) a troco do voto favorável dos outros dois partidos. Ora, os ingratos BE e PCP, depois da compra de 0,24% da EDP, votaram contra o orçamento de 2021 e fizeram cair o Governo.
O BE e O PCP são uns vendidos e uns falsos: quem percebe de economia e de contas saberá que 0,24% dos CTT transformam-se como por magia em nacionalização da empresa e por isso deviam ter aprovado o orçamento que chumbaram, não só por esta questão, mas por muitas outras. Neste caso dos CTT, em vez de “reabilitação” deveria haver “reversão”, pois já em 2019 os CTT falharam todos os 24 indicadores de qualidade, o mesmo se sucedendo em 2022, com evidentes prejuízos para toda a população.
Se, no caso da casa de Montenegro, assistimos a uma “reconstrução” lesiva para o Estado, no caso dos CTT, assistimos a uma “destruição” lesiva para o Estado e para a população.