Embora tal não esteja hoje em dia muito presente nos nossos espíritos, a Administração Pública portuguesa conheceu no tempo do Estado Novo uma grande estabilidade no exercício de funções por parte do pessoal dirigente.
Por exemplo, um Director-Geral era nomeado pelo respectivo Ministro e a título vitalício. Era, digamos uma categoria(i).
Significa isto que um Director-Geral depois de ascender ao cargo podia deitar-se a descansar? Pelo contrário, podia investir numa estratégia de actuação que baseando-se numa previsão da evolução da sua Direcção-Geral e das necessidades de serviço, a viesse a reforçar.
Já escrevi aqui no Jornal Tornado sobre A Revista de Contabilidade Pública e sobre A Administração Pública durante o Estado Novo. Infelizmente a colecção da Revista de Contabilidade Pública, que existe por exemplo na Biblioteca Central do Ministério das Finanças e na Biblioteca Francisco Pereira de Moura do Instituto Superior de Economia e Gestão não está ainda colocada on line. Mas a quase totalidade da colecção de opúsculos do Gabinete de Estudos António José Malheiro (156 em 157 números) pode já ser consultada on line na Biblioteca e Arquivo Digital da Secretaria-Geral do Ministério das Finanças.
No entanto a partir do momento em que Aureliano Felismino, depois de entre 1943 e 1947 ter exercido o cargo de adjunto do Director-Geral António José Malheiro, quase se poderia dizer criado para ele, lhe ter sucedido em 1947, aquando do seu falecimento, outros instrumentos de comunicação foram sendo criados – três séries de circulares – A, B e C – sendo as circulares C ditas de pedagogia profissional – e um Relatório Anual, baseado em dados pedidos aos seus serviços, correspondente a um “exame de consciência”, que foi evoluindo para exercícios de cálculo do “rendimento médio” / tempo empregue nos vários tipos de trabalhos, não com vista a atribuir prémios de produtividade, mas de fundamentar decisões de afectação de pessoal às várias repartições. Pessoal esse enquadrado em acções de formação interna e promovido mediante concursos de provas práticas a cujos resultados eram adicionados elementos obtidos em fichas de classificação de serviço.
Não se trata de aplicar orientações concebidas por Governos iluminados, mas de concretizar ideias surgidas no quadro da gestão da Direcção-Geral, e das estruturas como o Comité de Práticas Administrativas do Instituto Internacional de Ciências Administrativas em que Felismino participa escrevendo ou divulgando o que recebe, assumindo-se que essa gestão resulta de uma visão geracional: muitos dos funcionários da Direcção-Geral entraram por concurso em 1930 ou em 1931 e celebraram em meados dos anos 1950 as “Bodas de Prata” da sua entrada e são sensíveis ao objectivo do Director-Geral de preparar a geração que dentro de anos assegurará o render da guarda. Estes Relatórios Anuais, de 1948 a 1973, estão digitalizados. Espero que um dia sejam colocados on line.
Na altura, diga-se, não existiam nos organismos públicos relatórios de gestão, começaram a aparecer nos anos 1960 no Ministério do Ultramar normas que obrigavam à elaboração de Planos e Relatórios de Actividades e em 1987 a previsão legal de elaboração de planos e relatórios de actividades anuais foi consagrada por uma Resolução do Conselho de Ministros de Cavaco Silva / Isabel Corte Real o que deu lugar a artigos académicos que a saudaram como manifestação de introdução do New Public Management… Mas algumas Direcções – Gerais publicavam, explicou Felismino, “Anais” luxuosamente impressos, só que este preferiu uma prestação de contas feita com a prata da casa, basicamente um instrumento de comunicação interna, e, licenciado em Ciências Económicas e Financeiras pelo ISCEF, chamou-lhe “Relatório”.
A existência de Directores-Gerais inamovíveis não parece ter criado especiais reservas a Salazar o qual, depois de, como Ministro das Finanças ter dado o seu contributo pessoal para as reformas da administração financeira e do regime aplicável aos funcionários públicos parece ter deixado eventuais ajustamentos à iniciativa dos seus Ministros. O que se foi fazendo como manifestação de “simplificação administrativa” ou de “reforma administrativa”.
No tempo em que Marcelo Caetano foi Presidente do Conselho de Ministros, os Ministérios da Economia, muito em especial, a Secretaria de Estado da Indústria, e o Ministério da Educação foram objecto de reestruturação, passando as nomeações a serem feitas em comissão de serviço e promovendo-se o enquadramento dos titulares respectivamente, como inspectores superiores, e como vogais da Junta Nacional de Educação, com vencimento equivalente. Em 1979 após um período confuso de saneamentos ou aposentações, e até de nomeações seguidas de “saneamentos à esquerda” foi publicado um diploma definindo que as nomeações de pessoal dirigente – directores gerais, subdirectores gerais, diretores de serviços, chefes de divisão, ou equivalentes – seriam feitas em comissão de serviço e pelo período de três anos. Seguiram-se Estatutos do Pessoal Dirigente em 1989 (Governo Cavaco Silva) e em 2004 (Governo Durão Barroso), ambos com numerosas alterações subsequentes.
Tive ocasião de escrever vários artigos no Jornal Tornado sobre esta problemática, designadamente em 6 de Junho de 2018 “Três gerações de dirigentes na política e na alta função pública”, 24 de Outubro de 2018 “Instabilidade de dirigentes, instabilidade da Administração Pública”, bem como em 7 de Novembro de 2018 “Escolher os dirigentes da Administração Pública por concurso?”.
Continuo a pensar que os dirigentes têm de ser escolhidos de acordo com a sua capacidade profissional mas que isto deve vincular os membros do Governo que procedem à escolha dos dirigentes de topo, e os dirigentes de topo que a meu ver deveriam proceder à escolha dos dirigentes intermédios sem envolvimento dos membros do Governo, não exige necessariamente concurso, e que podendo haver vantagem na intervenção de um órgão de avaliação é importante dispor de um pool de elementos com experiência reconhecida. Tenho também a convicção de que a criação da CRESAP no tempo de Pedro Passos Coelho e a passagem da duração das comissões de serviço a cinco anos se inspiram em preocupações fundamentalmente correctas.
Diria até ter sido positivo que os Governos de António Costa tivessem mantido em vigor as alterações introduzidas em 2011, sob Passos Coelho, no Estatuto do Pessoal Dirigente, não fora por um lado o ter-se generalizado aparentemente o expediente fraudulento de nomear em substituição, previamente à realização do procedimento concursal, o candidato que se quer escolher e por outro o não se ter feito uma avaliação da legislação e explicado a aparente dificuldade em obter um número suficiente de candidatos profissionalmente credíveis. É intituitivo que pouca gente estará disposta a concorrer para credibilizar fraudes. Pode acontecer também que se tenha passado a ver a gestão pública de hoje como pouco motivadora. E até como arriscada dado que subsistem na lei uma série de fundamentos que podem ser invocados como fundamento de cessação das comissões de serviço.
E aqui convém evocar alguns casos recentes originados sob um Governo que já disse ter o direito de substituir dirigentes.
A Ministra da Juventude, Margarida Balseiro Lopes substituiu logo início um Presidente da Agência para a Modernização Administrativa, invocando, pelo que percebi, incumprimento de objectivos do PRR; registei, por alto, que o atingido invocava ter já exercido funções dirigentes noutro organismo e ter sido nomeado através de procedimento concursal da CRESAP e prometeu impugnação. Veremos
A Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, entendeu nomear novos dirigentes para a empresa Museus e Monumentos de Portugal e para o Instituto de Património Cultural, estruturas recém criadas. Registo apenas que em tempos foi vítima de um “saneamento” quando era, salvo erro, directora do Museu Nacional de Arte Antiga e podia ser mais facilmente exonerada, porque o cargo tinha nível de subdirector-geral ao contrário da generalidade dos então directores de museus, cujos cargos tinham nível de director de serviços. Julgo que não terá tido dificuldade em fundamentar os despachos.
A Ministra da Saúde, Ana Paula Martins, doutorada em Farmácia e julgo que ainda Professora da Faculdade de Farmácia de Lisboa(ii) regista no seu currículo governamental o ter sido entre dezembro de 2022 e Janeiro de 2024 Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Norte, pelo que transpareceu terá tido um conflito com os clínicos de obstectrícia do hospital de Santa Maria, que na maioria acabaram por sair e também acabou por sair ao fim de apenas um ano civil; nomeada Ministra, embrulhou-se com a Direcção Executiva do SNS e esta resolveu sair, aparentemente não porque tenha perdido confiança na Direcção Executiva mas porque esta não quis continuar (com ela como Ministra?). Lá arranjou outros nomes e passou a falar da reestruturação do INEM e de uma possível exoneração. Outro dia foi a uma cerimónia em Coimbra e regressou a Lisboa na viatura oficial com a sua equipa tendo sofrido um pequeno acidente numa auto-estrada. Foi pedido socorro para uma viatura sinistrada na A8. Andaram por aí a passear meios, inclusive uma viatura de desencarceramento, mas a viatura não foi encontrada. Soube-se depois que atrás da viatura oficial da Ministra vinha a viatura oficial da Secretária de Estado, que recolheu a Ministra, deixou lá o motorista(iii), e veio até ao Hospital S. Francisco Xavier onde Ana Paula Martins ficou internada para observação. Afinal o sinistro tinha-se dado na A10. Que mais virá a acontecer?
A Ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, cujo currículo governamental regista entre muitos outros itens, “Foi Coordenadora-Geral da Cooperação com os Países de Língua Oficial Portuguesa do Ministério da Justiça entre 1991 e 1993.” e “ foi Vice-Presidente do Instituto da Cooperação Portuguesa entre 1994 e 1996.”, também se envolveu numa exoneração, ou segundo disse, não foi disso que se tratou: ofereceu ao Director Nacional da PSP nomeado por José Luís Carneiro as funções de oficial de ligação em Moçambique e ele preferiu a aposentação. De imediato produziu um novo Director Nacional e uma nova equipa completa. Margarida Blasco parece ter em mente uma reestruturação da PSP que não explicou mas que por exemplo incluiria a presença da PSP dentro das escolas para impedir casos como o do miúdo nepalês de oito anos linchado pelos colegas no recreio e que nunca existiu. Foi também esta Ministra que nos indicou estar o Governo a discutir a integração de condenados nas Forças Armadas que Nuno Melo veio mais tarde a apresentar como hipótese meramente académica. Enfim, uma juíza conselheira jubilada cheia de dinamismo.
A Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho tem um curriculum académico distintíssimo e é já professora catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (curiosamente licenciou-se pela Universidade Católica). Julgo que terá sido a sua área da Faculdade que a pedido do então Secretário de Estado da Administração Pública Helder Rosalino “fundiu” num só dois diplomas do período de José Sócrates: a Lei de Vínculos, Carreiras e Remunerações e o Regime do Contrato de trabalho em Funções Públicas que mimetizando o Código do Trabalho sujeitava as associações sindicais que representavam simultaneamente trabalhadores da função pública e do privado a dois regimes de constituição e funcionamento. Ficou-se portanto com uma única lei geral do trabalho em funções públicas.
Desde a sua tomada de posse que a situação na administração da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, tecnicamente desde Cavaco Silva uma entidade de direito privado gerida por órgãos nomeados pelo Governo inspirava preocupações, estando em causa uma sucessão de Provedores e de Mesas. A Ministra ter-se-á preocupado sobretudo em arranjar uma fundamentação juridicamente sustentável para afastar a Provedora recentemente nomeada – a médica pediatra Ana Jorge, antiga Ministra da Saúde socialista – pondo em causa orientações definidas pela Mesa em funções e imputando-lhe publicamente condutas criticáveis. Depois teve de determinar que a Provedora e a Mesa ficassem em funções até serem substituídas e arranjou um Provedor – gestor que a comunicação social andou a escrutinar a ver se tinha um fil à la patte. Tinha vários mas tinham sido azares. Seguiu-se a nomeação da Mesa, incluindo dois antigos deputados do PSD. Pouco brilhante, mas Maria do Rosário Palma Ramalho ganha reputação de combativa, à custa de não respeitar os dirigentes.
Entretanto resolve interferir com o processamento das pensões e retenções na fonte lançando publicamente suspeitas de manipulação com fins eleitoralistas. Ora a Segurança Social tem tido a preocupação de ser rigorosa neste domínio e de responder a todo um conjunto de processamento de apoios que foram sendo criados. A Presidente do Instituto de Segurança Social explicou tudo publicamente e pediu a exoneração por – justificou – ter sentido falta de confiança por parte do Governo. Foi rapidamente substituída, com umas palavras de circunstância.
Em rigor o que esta dirigente poderia ter alegado era que deixara de ter confiança no Governo, e que este não respeita os dirigentes.
Outros casos parecem estar em preparação.
Notas
(i) De que até se podia pedir licença ilimitada como, segundo informou o Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, a quem aqui agradeço, terá pedido o Director-Geral da Fazenda Pública, António Luís Gomes.
(ii) Estes currículos políticos nunca são muito claros.
(iii) A comitiva do presidente iraniano recentemente acidentado também se deslocava em três helicópteros, mas perderam-se de vista. Felizmente aqui tudo correu bem.