Seis meses passados depois do início da crise do lixo, o Líbano não é o mesmo país. As manifestações de protesto contra a acumulação dos resíduos urbanos, a inércia do governo e a corrupção da classe política, catalisaram o despertar da sociedade civil. Os cidadãos acreditaram que as suas reivindicações legítimas podem influenciar as decisões políticas. Um tabu foi quebrado.
Entrevistámos em Beirute os líderes do movimento libanês ‘Vocês cheiram mal’ (Tol3et Ri7etkon), Khattar Torbey, Marwan Maalouf e Hikmat Al Amine, que desde o início da “crise do lixo” organizaram protestos e pressionaram o governo a encontrar uma solução sustentável.
Os libaneses olham com muitas reservas as promessas dos governantes, habituados a conviver com mentiras e esquemas de corrupção. O movimento ‘Vocês cheiram mal’ tem vigiado cada passo do executivo, atento às tentativas de contornar o problema. Graças a este esforço de vigilância, foi abortado um plano do governo para exportar o lixo libanês para a Serra Leoa, país que acaba de sair de um longo combate de erradicação do Ébola – o negócio tinha já o aval de um conselheiro governamental, mas sob pressão dos média e de algumas ONG as autoridades de Freetown comprometeram-se a bloquear a sua realização.
Após a Serra Leoa, foi a vez da Rússia desmentir ter dado luz verde à proposta da companhia britânica Chinook de exportar o lixo libanês para território russo. Os activistas libaneses não ficaram surpreendidos, pois contavam com o fracasso dos planos do governo. Apontam o dedo aos políticos, lembrando que o lixo não pode ser convertido em energia, pois os resíduos tóxicos não foram nunca separados e denunciam uma tentativa de fazer passar um projecto de construção de um grande incenerador no Líbano que representaria para os partidos um bolo financeiro importante a partilhar durante muitos anos.
Reciclar o lixo e a política
O movimento ‘Vocês cheiram mal’ representa um ponto de viragem importante na sociedade libanesa – reunindo gente de todas as comunidades religiosas e sem ligações aos partidos, tornou-se veículo de expressão da indignação dos cidadãos contra a corrupção instalada. Num país onde a corrupção política bloqueia cada iniciativa independente, os cidadãos acreditaram pela primeira vez que o feitiço pode ser quebrado. “Depois de a polícia ter disparado sobre os manifestantes no dia 23 de Agosto, a manifestação do dia 29 tomou uma dimensão sem precedentes, foi a primeira grande manifestação independente dos poderes políticos e das confissões religiosas contra a corrupção da classe política”, diz Khattar Torbey.
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Estão neste combate desde 2013, quando o parlamento prolongou o seu mandato. “Quando soube, montei uma tenda diante do parlamento”, conta Marwan. Com Khattar e Hikmat iniciou então o movimento “Pela República”, contra a decisão do parlamento de suspender as eleições. “Nos protestos de 2013 e 2014 não foram muitos a sair à rua, mas desta vez é diferente”, sublinha, acrescentando que “as pessoas perceberam que a classe política não está interessada em resolver os problemas e que podemos mudar as coisas se agirmos”.
O movimento não precisou de convencer os libaneses de que o problema principal por trás da questão do lixo é a corrupção política. “No Líbano existem leis e instituições, mas o problema é que as leis não são respeitadas nem aplicadas”, diz Khattar, apontando o dedo aos dirigentes políticos, que se habituaram a partilhar os lucros do negócio dos resíduos urbanos, que representa centenas de milhões de dólares. “É preciso reciclar o lixo e a política. Esta gente esgotou financeiramente o país, enchem os bolsos com o dinheiro público”, acrescenta, recordando que a dívida pública libanesa representa 140% do PIB e o desemprego jovem está entre 30 e 35% a nível nacional e nalgumas regiões atinge os 70%.
Segundo os relatórios do Banco Mundial e do FMI, a riqueza do país está nas mãos de cerca de 4 mil pessoas. Uma teia de interesses enraizada num aparelho político que não se alterou durante décadas. “A idade média dos deputados e dos membros do governo é 60 anos, o ministro da Juventude tem 65 anos, eles estão desligados da realidade e roubam-nos o futuro”, diz Hikmat, que admite estar a procurar emprego fora do país, como todos os jovens libaneses.
A corrupção e a geopolítica mantêm o Líbano em estado de coma. Dividido entre diferentes comunidades religiosas reféns de dirigentes políticos muitos deles com passados criminosos e envolvidos em esquemas de corrupção, o país está politicamente paralisado, nas mãos de facções que estão dependentes dos interesses dos vizinhos poderosos da região – o Irão e a Arábia Saudita. O Líbano está há mais de um ano sem presidente, desde o fim do mandato de Michel Sleimane em 25 de Maio de 2014, o mais longo vazio presidencial desde a guerra civil de 1975-1990. Segundo a tradicional partilha de poderes, o chefe de Estado deve ser um cristão maronita, mas para evitar um bipolarismo perigoso cristão-muçulmano, os cristãos estão divididos entre apoiantes do bloco xiita do Hezbollah, aliado do Irão e do regime de Damasco, e da facção sunita, apoiada pela Arábia Saudita. O governo de Tammam Salam sofre da paralisia que afecta todas a instituições do Estado, incapaz de fazer passar orçamentos, projectos de lei ou nomeações.
O despertar da consciência cívica
O movimento ‘Vocês cheiram mal’ atraiu à rua várias outras organizações e movimentos, cada um com outro pacote de exigências. Para Marwan, é natural que assim aconteça, pois há muitos problemas por resolver, mas frisa que o núcleo duro do movimento é constituído por pessoas que se conhecem bem e que estão de acordo quanto ao essencial. “Estamos envolvidos num combate político ao nível da sociedade civil, não pretendemos fundar um partido nem vamos deixar que os políticos da velha guarda se apropriem do movimento”, ressalva.
Quanto à influência das confissões religiosas sobre a política libanesa, Khattar recorda que a grande manifestação de 29 de Agosto e as que se seguiram reúnem libaneses de todas as confissões religiosas e todas as orientações políticas, apesar dos esforços da classe política para semear a divisão. “Começaram por nos acusar de ligações ao Hezbollah, acusaram-nos de estarmos contra os sunitas porque o primeiro-ministro, o ministro do Ambiente e o ministro do Interior são sunitas, mas entre os cidadãos que aderem aos protestos há muitos sunitas. Depois acusaram-nos de ser contra os cristãos para suscitar a desconfiança na comunidade cristã, ultimamente lançaram rumores de que trabalhamos para a CIA para pôr contra nós os xiitas, mas as pessoas percebem o ridículo de todas estas acusações”, explica, divertido.
Traumatizados pelas guerras recentes e com o conflito Sírio à porta, os libaneses receiam tudo o que possa desestabilizar o país. Acusados de pretender provocar uma revolução que leve à queda do governo, os activistas do “Vocês cheiram mal” frisam que aquilo que exigem dos políticos é que comecem a respeitar a lei. “O nosso objectivo não é uma revolução nem um golpe de Estado, estamos conscientes de que seria muito perigoso no contexto político da região”, diz Marwan, enquanto Khattar fala de uma atitude de não-violência que acredita ser portadora de mudanças na sociedade: “Batemo-nos contra o que está mal e as nossas acções têm eco nas redes sociais. Se os governantes voltarem a usar a força, vai acontecer como quando dispararam sobre os manifestantes, a oposição será ainda mais numerosa”.
Todos os grupos que aderiram aos protestos estão de acordo quanto a três exigências: uma solução ambiental para a questão dos resíduos, a convocação de eleições que dêem legitimidade ao parlamento antes que seja escolhido um chefe de Estado e a demissão do ministro do Interior, que ordenou à polícia que disparasse contra os manifestantes.
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O primeiro-ministro libanês não desistiu da intenção de exportar o lixo libanês, mas a medida é contestada por várias ONG. O governo de Beirute anunciou que o consórcio britânico Chinook apresentou no fim de Janeiro documentação que dá garantias de que a Rússia aceita acolher os resíduos libaneses, mas uma fonte diplomática russa desmentiu esta informação, em declarações ao jornal libanês Al Joumhouria. De acordo com esta fonte, seria impossível reciclar o lixo libanês, pois está há demasiado tempo acumulado nas ruas.
Em conjunto com as ONG IndyAct, BAN (Basel Action Network) e IPEN (A Toxics-Free Future), os activistas do ‘Vocês cheiram mal’ recordam ao governo que o Líbano ratificou a Convenção de Basileia sobre o Controlo dos Movimentos Transfronteiriços dos Resíduos Perigosos. “Temos insistido junto do governo para que o as verbas destinadas à recolha dos resíduos sejam entregues às municipalidades, para que sejam elas a ocupar-se, que o lixo seja recolhido e reciclado e que a empresa Sukleen, envolvida num esquema de corrupção, seja inteiramente afastada”, explica Marwan. “É tempo de o governo se meter ao trabalho e se deixar de subterfúgios, em vez de dizer à população que não conseguiram recolher o lixo por causa das nossas manifestações”, remata.
Por trás da empresa de recolha de lixo Sukleen está uma empresa da poderosa família Hariri, a Averda, que possui a Sukleen e a Sukom-International (Sukomi). A Averda foi criada por Maysarah Sukkar, um próximo do ex-primeiro-ministro Rafic Hariri, alguns meses antes de obter o primeiro contrato. A empresa tem um volume de negócios de 20 mil dólares e domina o mercado da recolha do lixo em Beirute e Monte Líbano, com contratos renovados durante anos sem concursos públicos, e que não faz reciclagem de lixo, só faz passar os resíduos por prensagem. O contrato com a Averda chegou a termo em 17 de Julho e foi então que o lixo começou a amontoar-se nas ruas.
O serviço da Averda é deficiente desde sempre. A empresa nem sequer tinha experiência na área dos resíduos urbanos, foi graças à relação próxima entre Maysarah Khalil Sukkar e o ex-primeiro-ministro Rafic Hariri que, em 1994, o governo confiou esta tarefa a uma companhia que tinha até à data actividades apenas no sector das máquinas industriais.
No Líbano é segredo de Polichinelo que a Averda financia o partido de Hariri, o Corrente do Futuro, o partido dos sunitas moderados. O contrato concedido à Sukleen (a empresa do grupo Averda) foi renovado várias vezes (nomeadamente em 1995, por um período de cinco anos, e em 2006), sempre sem que tenha sido aberto concurso público.
Sempre que um contrato chega a termo surge uma crise como esta que teve início há seis meses, precisamente porque a partilha dos rendimentos de corrupção funciona com base num equilíbrio instável, constantemente renegociado entre os dirigentes políticos e religiosos e com a geopolítica em pano de fundo.
Se a “crise do lixo” mobilizou um despertar da sociedade civil, é precisamente porque a Averda reflecte toda a degradação dos serviços públicos no Líbano, a incompetência, negligência, desprezo pela saúde pública, irresponsabilidades da classe política, tráfico de influências, etc.
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Luanda como Beirute
Em Angola, como no Líbano, a recolha dos resíduos urbanos é um dos serviços públicos básicos que não funcionam, inteiramente dependentes dos acordos entre os barões da política quanto à partilha dos lucros. Outra coincidência entre os dois países, é o envolvimento da Averda no negócio do lixo.
As montanhas de lixo são paisagem comum nas ruas da capital angolana. Entre os municípios de Luanda mais afectados pela crise do lixo estão Kilamba Kiaxi, Belas, Cacuaco, Cazenga e Viana. Os caixotes do lixo não existem e há meses que não é feita a recolha. No mercado a céu aberto em Kalemba 2 (Kilamba Kiaxi) os resíduos acumulam-se na rua, ao lado das bancas onde é vendido peixe, carne, legumes, tudo com moscas, mosquitos e larvas à mistura. Há quem deite fogo aos montes de lixo e o fumo destas fogueiras junta-se ao odor nauseabundo dos processos de decomposição. Um atentado à saúde pública que se desenrola perante a inércia das autoridades responsáveis.
A recolha dos detritos urbanos é um negócio milionário e é natural que, na ausência de transparência na contratação pública, a cobiça dos ganhos privados consequentes provoque tensões entre os actores políticos.
Em meados de Dezembro, a filha do presidente angolano, Isabel dos Santos, apresentou o Plano Director Geral Metropolitano de Luanda (PDGML), a ser implementado num período de 15 anos pelo consórcio Urbinveste que dirige, com um orçamento previsto de 15 mil milhões de dólares. Inicialmente promovido pelo Governo Provincial de Luanda, o plano director passou para a coordenação directa da Presidência e de Isabel dos Santos, que assim assume o controlo das oportunidades exclusivas que este projecto implica. Um dos negócios envolvidos é o da recolha do lixo.
Este novo posicionamento da filha de José Eduardo dos Santos acontece depois de o presidente angolano ter empossado como governador de Luanda um dos seus homens de confiança, o general Higino Carneiro, uma nomeação que vem colocar de facto o cargo nas mãos de Isabel dos Santos. O antecessor de Higino Carneiro era Graciano Francisco Domingos, que tinha sido empossado em Setembro de 2014, no seguimento da exoneração de Bento Francisco Bento, que foi governador da província capital durante três anos.
E é aqui que entra a Averda libanesa. Um mês depois de o Presidente da República ter exonerado Bento Francisco Bento, a Inspecção Geral da Administração do Estado iniciou uma auditoria ao Governo Provincial de Luanda. Nos bastidores do poder falou-se então da alegada ligação à Averda do ex-governador de Luanda e do Director-Geral do Serviço de Inteligência Externa (SIE), André de Oliveira João Sango. Os dois políticos seriam sócios na criação da empresa de saneamento Ecoverde, joint venture fundada pela Averda que obtivera um contrato de cinco anos de fornecimento de serviços de limpeza urbana em Ingombota.
O município de Ingombota é a zona de maior concentração financeira e comercial da capital angolana, onde se situam o Palácio Presidencial, a Assembleia Nacional, o banco central, alguns ministérios, os principais bancos, três embaixadas europeias e as sedes das maiores empresas nacionais e estrangeiras a operar em Angola. Ao conseguir este contrato para a recolha de lixo numa das melhores áreas da cidade, a Averda veio contrariar os interesses da Envirobac, empresa ligada ao Chefe da Casa de Segurança da Presidência da República, general Manuel Vieira Dias Júnior “Kopelipa”.
O lixo é realmente um imenso negócio e Isabel dos Santos sabe bem que assim é. A talentosa filha do chefe de Estado angolano começou o seu percurso nos negócios milionários na década de 1990 com um cargo de liderança na Urbana 2000, empresa do grupo Jembas à qual foi adjudicada a recolha do lixo em Luanda.
As notícias sobre o combate dos libaneses do ‘Vocês cheiram mal’ não são logicamente o tipo de informação que o chamado “totalitarismo discreto” angolano gostaria de ver chegar à sociedade civil angolana. Ainda alguém poderia começar a pensar em reciclagem.