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Sábado, Dezembro 21, 2024

Criança não é mãe, estuprador não é pai

Tereza Cruvinel, em Brasília
Tereza Cruvinel, em Brasília
Jornalista, actualmente colunista do Jornal do Brasil. Foi colunista política do Brasil 247 e comentarista política da RedeTV. Ex-presidente da TV Brasil, ex-colunista de O Globo e Correio Braziliense.

O obscurantismo parlamentar ameaça aprovar um projeto de lei hediondo, que pode mandar para a cadeia, para cumprir pena de 20 anos, uma criança ou adolescente que tenha sofrido estupro e feito aborto legal depois das 22 semanas de gravidez. A punição será para todas as mulheres mas sabemos todos que as meninas do Brasil são as vítimas mais frequentes da violência sexual. Já o estuprador, se chegar a ser punido, pegará pena de 6 a 10 anos. Que nome se pode dar a tamanha aberração jurídica?

Ontem, num piscar de olhos e sem qualquer debate, a Câmara aprovou a urgência pedida pelo coordenador da frente evangélica, Eli Borges (PL-TO) para o projeto do deputado Sóstenes Cavalcanti (PL-RJ). E com isso, a proposta será votada em plenário, talvez na próxima semana, sem passar pelas comissões técnicas. A estratégia da extrema direita é entupir a pauta legislativa com projetos dessa natureza para gerar conturbação política e atravancar as votações de interesse do Governo.

O noticiário de ontem mesmo falava de uma menina do ABC paulista que foi violentada pelo próprio pai enquanto estava inconsciente numa UTI, após uma parada cardiorrespiratória causada pela asma. O ato foi gravado pelas câmeras do hospital. Monstros assim existem, embora a gente custe a crer. Boa parte dos estupros são cometidos por parentes próximos.

As meninas e adolescentes são o alvo claro do projeto hediondo porque elas são as que mais recorrem ao direito de abortar em decorrência do estupro. Em 60% dos casos de estupro denunciados a vítima tem menos de 14 anos.

Elas demoram a descobrir que ficaram grávidas e por algum tempo remoem sozinhas a situação, buscando coragem para pedir ajuda dos pais ou de alguém. Vem depois a peleja para entrar com uma ação na Justiça pedindo autorização para abortar. Quando a conseguem, frequentemente as 22 semanas já se passaram.

São estas meninas que o projeto quer transformar em homicidas, numa espécie de segundo castigo pelo que já sofreram.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança, em 2023 foram registrados quase 75 mil casos de estupro, um aumento de mais de 8% em relação a 2022. E sabemos que nem sempre as vítimas registram a ocorrência. Por vergonha, para não se sentirem duplamente humilhadas.

No Brasil, a lei garante o direito ao aborto apenas em caso de estupro, risco para a vida da gestante ou quando o feto é comprovadamente anencefálico. Recentemente o CRM, aliado do obscurantismo parlamentar, orientou os médicos a não fazerem o aborto, mesmo nestes casos, após as 22 semanas. O ministro Alexandre de Morais, do STF, suspendeu a decisão.

O deputado Eli, que pediu a urgência, disse que é necessário derrubar logo a decisão do ministro do STF para que prevaleça a palavra dos médicos. E diz contar com o apoio do Centrão. Tem sido assim: os partidos da direita apoiam o governo do qual participam (tendo ministros e outras vantagens) em matérias econômicas. Nas pautas de costume, fecham com a extrema direita.

A senadora bolsonarista Damares Alves, uma das articuladoras da ofensiva, diz que, chegando ao Senado, o projeto será votado imediatamente. Que a extrema-direita fará até obstrução da pauta para garantir a rápida votação.

– Tem partido que quer matar bebê? Em outros assuntos, a gente até senta para negociar. Com relação à vida, não tem concessão – disse ontem a senadora.

Já com a vida e o futuro das crianças e adolescentes violentadas ela não se incomoda. Ter um filho é quase sempre uma alegria para qualquer mulher. Já o filho de um estupro será, para toda a vida, a síntese impossível entre amor e dor.

Se o projeto passar, as vítimas ficarão ainda mais inibidas e o acesso ao aborto em caso de estupro ficará impossível.

Eu sei que não está fácil mobilizar pessoas por bandeira nenhuma nessa conjuntura insólita que vivemos. Mas este retrocesso, não podemos deixar que passe. A campanha, lançada pela bancada feminina e movimentos de mulheres atende pelo título deste artigo: Criança não é mãe, estuprador não é pai. Pelas redes, pelos meios possíveis, temos que dizer não. Que tal entupirmos os emails dos deputados de mensagens contra o projeto? Eles podem ser encontrados aqui: cardómetro legislatura57


Texto original em português do Brasil

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