O Século XIX português conheceu na sua primeira metade uma elevada conflitualidade militar, com as invasões francesas, ou político-militar, com a independência do Brasil, a Guerra Civil entre liberais e miguelistas, e a sucessão de movimentos que foram dando sucessivamente a primazia a vintistas e a cartistas. Com a Regeneração e, no plano constitucional, a adopção do Acto Adicional à Carta de 1852, a crispação política reduz-se. De 1852 é também a fundação do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, que se vai interessar por questões laborais e sociais, e no qual participam alguns dos que serão os primeiros socialistas mas também políticos liberais, e operários assalariados, mas também alguns que já se haviam conseguido estabelecer por conta própria. Isto num país em que a indústria apenas arrancava.
É objectivo deste apontamento chamar a atenção para os trabalhos historiográficos de João Lázaro, que já publicara em 2014, O Despontar do Movimento Operário Português na Esfera Pública (1950-1960) e viu as Edições Afrontamento publicarem no início do corrente ano de 2024 a sua recente tese de doutoramento sob o título Na Teia da Aranha. Debate Público, Mobilização e Internacionalismo no Movimento Operário Português (1865-1877).
É usual que os trabalhos académicos de História indiquem o intervalo temporal sobre o qual incidem. Neste caso João Lázaro delimita o período de estudo situando-o entre a realização de um Congresso Social promovido em final de 1865 (e cujas sessões se prolongaram em 1866) pelo Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas com vista a discutir as possibilidades do associativismo, congresso que o autor recusa visasse corresponder às ideias da Associação Internacional do Trabalhadores, conhecida por Internacional, criada em Londres em 1964, e a realização no início de 1877, de um Congresso Socialista, mais precisamente o I Congresso dos Operários Socialistas de Portugal.
João Lázaro valoriza a convocação do Congresso Social, iniciativa interclassista, que atraiu 53 associações da região de Lisboa e 18 das províncias, muito embora muitas das reuniões realizadas no seu âmbito se tenham caracterizado por discussões intermináveis e não tenham sido conclusivas, não deixando de apontar a existência do Centro Promotor de várias correntes de opinião, algumas das quais defendiam até que se tomasse posição contra as teses socialistas e comunistas e contra a existência de uma acção internacional. É claro que o Centro Promotor teria de promover a discussão de posições políticas o que os seus Estatutos não consentiam. O então Ministro do Reino Rodrigues Sampaio, que fora presidente do Centro e era seu presidente honorário alertou para essa limitação em conversa com um membro da Direcção. O retrato de Rodrigues Sampaio no Centro Promotor deixa, por deliberação de Assembleia Geral, de estar colocado numa parede e fica guardado num armário, o que acaba por ter algum eco na imprensa, há sócios que se desvinculam e outros que entram. O Centro tenta alterar os seus Estatutos mas o Governo não o consente. Perante um movimento grevista intenso em 1872 e 1873 o Centro tenta apoiar algumas das classes em greve mas os seus aderentes com ideias mais socialistas investem numa associação denominada Fraternidade Operária, activa em Lisboa e no Porto, que dinamiza os processos. Em 1875 constituir-se-á formalmente um Partido Socialista Português.
No trabalho de João Lázaro emergem ecos das discussões geradas pelos acontecimentos internacionais, designadamente da Comuna de Paris em 1871. Talvez se necessitasse de uma recolha mais exaustiva de notícias e textos de opinião. No livro mostra-se que um represente da polícia francesa esteve em Portugal a fazer um levantamento de repercussões e inclusivamente para inquirir sobre a presença em Portugal de refugiados da Comuna(i). Talvez não existissem na altura muitas notícias e debates com contraditório, atendendo ao número de communards passados pelas armas ou deportados, aliás a tradução portuguesa da Histoire de la Commune de 1871 de Prosper-Olivier Lissagaray só veio a ter lugar em 1995 e a impressão foi amputada dos capítulos finais sobre a deportação e dos apêndices com notas(ii). No próprio prefácio do autor à edição de 1896, 25 anos depois dos acontecimentos, se mostra haver consciência da dificuldade em tratar o tema. O historiador André Maurois havia de escrever “De la Commune date la ‘sécession du prolétariat’ dont la France a tant souffert”(iii).
O Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas não deixou em todo o caso de se pronunciar sobre pontos concretos colocados à sua atenção:
Numa sessão, presidida por Sousa Brandão, o sócio João Luís da Silva Viana apresentou a proposta de um voto de sentimento pela execução de Louis Rossel, um antigo oficial do exército francês que tinha aderido ao governo revolucionário da Comuna de Paris. Perante esta proposta outro sócio, Máximo Pereira, solicitava que o Centro Promotor escrevesse à família de Rossel participando-lhe a deliberação. Ambas as propostas foram aprovadas por unanimidade. Desta sessão resultam mais duas demissões da comissão administrativa em protesto pela proposta. O Jornal do Comércio retrata que a assembleia do Centro tinha mostrado certa incerteza na temática com receio “que pudesse ser considerada como demonstração política”, no entanto acabou por avançar para o debate e votação. Curiosamente, um certo jornal escreve que nesta assembleia João Bonança apresentou uma votação pelas mortes do Arcebispo de Paris “e outros reféns à ordem da comuna que acaba reprovada pelos sócios.(iv)
O Centro Promotor, poderá dizer-se, perdeu assim uma oportunidade de ser politicamente correcto, dando uma no cravo e outra na ferradura.
Entretanto a tese não descura a demonstração de como a luta política e social vai permitindo a ligação à teia de aranha internacionalista tecida a partir de Londres, onde a corrente de Marx e Engels vai progressivamente reforçando o seu peso.
Se bem compreendi a abordagem de João Lázaro, muito embora se registem contactos com Londres sobretudo através do correio, os socialistas portugueses vão construindo a sua organização num processo paralelo ao do republicanismo e preferindo as teses de Marx e Engels às de Bakunine. Embora tenha existido a ideia de que a organização de Portugal se poderia dinamizar a partir de Espanha, a vinda de três dirigentes espanhóis a Portugal em 1871 deveu-se também a necessidade de os retirar temporariamente de Espanha onde a Internacional havia sido considerada ilegal.
Para garantir alguma segurança, e segundo uma proposta que terá partido de José Fontana, as discussões entre os três espanhóis e três portugueses terão tido lugar num barco no Tejo. Dos portugueses, José Fontana(v) e Antero de Quental faziam intervenções e o terceiro – Jaime Batalha Reis – remava.
Para além do nome de José Fontana, é de registar entre os dirigentes socialistas emergentes os nomes de Azedo Gneco e de Nobre França, Do tempo do Centro Promotor registe-se o presidente Vieira da Silva falecido no exercício do cargo. Tipógrafo, “operário letrado”. Tem uma rua em Alcântara mas só a leitura desta tese de João Lázaro me permitiu identifica-lo. Obrigado.
Doze anos cruciais no Séc. XIX português com pontes para o Reino Unido, Brasil e Espanha.
Notas
(i) Missão Latour
(ii) História da Comuna de 1971, Edições Dinossauro, tradução de Ana Barradas.
(iii) Histoire de la France, Hachette.
(iv) Cfr p. 50.
(v) Aliás suíco italiano imigrado para Portugal com ligações aos irmãos Bertrand com os quais colaborava na livraria. João Lázaro discute as teses que o identificam com um Fontana que anos antes terá colaborado com os internacionalistas em Londres.