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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Promitentes compradores de imóveis preteridos em favor dos bancos em caso de insolvência das construtoras?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

No corrente mês de Agosto chamou-me a atenção um texto publicado no Portal de imobiliário Idealista com o título “Banca com prioridade sobre os compradores de casa em caso de insolvência”:

A partir de agora, quando uma construtora entra em insolvência e incumprimento do contrato, a banca passa a ter primazia sobre os compradores da casa na execução da dívida. Em causa está um decreto-lei do Governo, já publicado em Diário da República (DR).

“O presente decreto-lei procede ao reforço da hipoteca perante o direito de retenção, que, até à data, prevalecia de forma absoluta sobre a primeira”, lê-se no diploma, enquadrado no âmbito de uma medida introduzida no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para cumprir as metas de desembolso.

Na prática, e tal como explica o ECO, a mudança na lei retira o direito a quem assinou o contrato-promessa de compra e venda (CPCV) de ser indemnizado em primeiro lugar pelo sinal que deu pela habitação.

No entanto, o comprador será pago primeiro que a banca se tiver “realizado despesas com o imóvel com vista à sua conservação ou aumento do seu valor”, tal como explica o documento.

Segundo Paulo Valério, presidente da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação (APDIR), citado pela publicação, com a nova lei “há um risco de os promitentes-compradores serem mais prejudicados, porque primeiro serão os bancos a receber e só depois terão direito a reaver o sinal em dobro”(i).

O novo Decreto-Lei é o Decreto-Lei nº 48/2024, de 25 de Julho e vem alterar à redacção do Código Civil, portanto um dispositivo em princípio estável, invertendo, pode-se dizer, a orientação legislativa.

Repare-se que as construtoras que vendem para o mercado imobiliário tendem a estar endividadas à banca para ir financiando a sua actividade, sendo normal que este financiamento assente quer da hipoteca dos terrenos para construção quer dos imóveis que vão resultando da construção. Nos períodos de florescimento da actividade o financiamento pode ser também feito pelos clientes em perspectiva, quer pelo pagamento de sinal ou de reforço de sinal ligados à celebração de contratos promessa de compra e venda. E o facto é que estamos presentemente num período de relativo florescimento do mercado imobiliário em que há empreendimentos que estão quase totalmente vendidos antes ainda que a construção tenha começado. Uma amiga facebookiana referia-se há dias, e muito bem, a compra de prédios ainda em planta ou em fase de construção. É justamente esta vertente do financiamento da actividade de construção e os direitos dos clientes que já desembolsaram uma parte do pagamento que são postos em causa por esta “oportuna” modificação do regime legal.

Que razões poderão estar subjacentes a esta modificação? E que têm essas razões a ver com os objectivos do Plano de Recuperação e Resiliência?

As obrigações dos Estados-membros perante as instâncias da União Europeia têm passado pela divulgação de Planos Nacionais de Reformas. Aparentemente essa dinâmica “passou” para o Plano de Recuperação e Resiliência, cujas componentes nacionais integram listas de medidas, designadamente legislativas, conexas com o Plano, sendo que os desembolsos do Plano têm sido condicionados à aprovação dessas medidas.

Recordemos a forma como, sem que ninguém pareça ter-se apercebido, os desembolsos foram condicionados a uma Reforma das Ordens Profissionais não discutida internamente e que fez correr muita tinta. Mas aqui sempre se foi dizendo que a “Europa” considerava a situação existente no sector das Ordens Profissionais lesiva da concorrência, muito embora não se perceba porque tinha de ser a regulamentação concretamente adoptada a resolver problemas. Anoto entretanto que a ponte entre o Governo socialista e as Ordens acabou por ser o bastonário da Ordem dos Economistas, ou seja de uma actividade profissional em que o exercício da actividade como profissão liberal não é a situação dominante, e o próprio bastonário, em tempos Ministro do Partido Socialista, é um funcionário público, com a categoria de professor catedrático. Mas enfim, assegurou o diálogo com algum sucesso e até acabou por ser reconduzido como Presidente do Conselho Nacional de Ordens Profissionais.

Rita Júdice

O ECO de 2 de Agosto Governo acaba com primazia total do comprador de casa sobre a banca quando construtor entra em insolvência – ECO (sapo.pt) reproduz declarações do Gabinete da actual Ministra da Justiça, Rita Júdice, com uma ladainha de críticas ao regime vigente até agora, e defende deste modo a solução adoptada:

Esta solução corresponde ao que tem sido defendido pela doutrina jurídica há mais de 30 anos, traz mais segurança jurídica e mais justiça: o retentor não pode ser pago depois do credor hipotecário nos casos em que tiver contribuído para conservar ou aumentar o valor da coisa, pois nessas situações, sem a preferência do retentor, o credor hipotecário enriqueceria à custa das despesas feitas por aquele. Nos restantes casos, o critério da prioridade do registo ou da constituição do direito é mais justa e traz maior segurança jurídica.

No entanto tem de reconhecer que, se foi o anterior Governo, com Catarina Sarmento de Castro, a agendar a alteração, não foi sequer responsável por deixar uma proposta que indicasse o seu sentido.

Catarina Sarmento de Castro

Uma vez que o diploma já entrou em vigor, os interessados na compra dos imóveis que apliquem dinheiro sob a forma de sinal ou de reforço de sinal ficarão quase certamente sem ele, uma vez que os valores com que tiverem contribuído dificilmente serão reconhecidos como tendo contribuído para conservar ou aumentar o valor do imóvel e que, ainda que invoquem tal situação, aos advogados da banca contestarão sempre. É curioso aliás que não existam alertas públicos das associações da defesa do consumidor e recomendações sobre a forma de redigir os contratos-promessa ou sequer de comprovar as finalidades subjacentes às entregas de dinheiro.

Miguel Pinto da Luz

É porém certo que com as primeiras insolvências de construtoras e as primeiras situações de compradores lesados, as notícias se espalharão, e o financiamento da nova habitação pelos promitentes compradores se retrairá(ii).

Este Decreto-Lei 48/2024 vem assinado pelo Primeiro-Ministro e pela Ministra da Justiça, e também pelos Ministros das Finanças (o ministro dos bancos) e da Economia(iii) (o ministro das empresas de construção). Em princípio os diplomas devem ser assinados pelos Ministros competentes em razão da matéria, não deixando de ser curioso que a assinatura de Miguel Pinto da Luz, Ministro da Habitação, não figure neste.

 

Notas

(i) Sendo os processos de insolvência o que são, isto quererá dizer que os bancos receberão uma parte dos seus créditos e que os promitentes compradores muito provavelmente já não receberão nada.

(ii) Estou a falar de habitação por ser esse o impacto que mais rapidamente nos ocorre. Mas não se esqueça que podem estar em causa outros segmentos do mercado imobiliário, como a aquisição de espaço para escritórios, num mercado actualmente muito animado pelos projectos de procura de novas instalações. Será que os promitentes compradores empresariais deverão passar a fazer seguros para a eventualidade de insolvência das empresas de construção promitentes vendedoras?

(iii) Neste caso concreto assinou um Secretário de Estado em substituição do Ministro.

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