Por altura das eleições para o Parlamento Europeu e das eleições subsequentes para dois Estados do Leste da Alemanha – Turíngia e Saxónia – e, mais tarde, do Brandemburgo, os maus resultados do Partido Social Democrata (SPD), dos Verdes, e dos Liberais face a uma Alternativa para a Alemanha (Afd) em crescendo levaram muitos observadores a vaticinar – ou até no caso dos mais engagés a exigir – o fim de Olaf Scholz como chanceler alemão ou a sua substituição na chefia do SPD com vista à disputa das eleições de 2025. Publiquei aqui em 18 de Setembro de 2024 um artigo – Bündnis Sahra Wagenknecht – que abordava este contexto.
As eleições no Brandemburgo, governado por uma coligação SPD – CDU – Verdes liderada por um Ministro – Presidente do SPD, não podem ser comparadas com as restantes porque foi desenvolvida pelo referido Ministro Presidente uma forte campanha de voto útil, visando a sua recondução, que só aceitaria se o SPD ficasse à frente da Afd, o que veio a acontecer, subindo tanto o SPD como a Afd 7 lugares (ficando a perfazer respectivamente 32 e 30 lugares). Mas a União Cristã – Democrata (CDU) perdeu 3 lugares ficando-se pelos 12 e os Verdes e o Die Linke, não conseguindo um mínimo de 5 % dos votos foram eliminados do Parlamento estadual. Os Liberais, eliminados na eleição anterior, caíram quase até 0 votantes. A Bündnis Sahra Wagenknecht (BSW) que concorria pela primeira vez, atingiu 13% dos votos, reunindo 14 lugares. Simplesmente este resultado do SPD foi alcançado mantendo Scholz afastado das manifestações eleitorais, para não “pegar” a sua impopularidade ao colega de partido candidato à recondução.
Ora Scholz, antigo burgomestre da cidade – estado de Hamburgo e Ministro das Finanças da grande coligação CDU-SPD que fora liderada por Merkel (e na qual Ursula von der Leyen fora Ministra da Defesa) havia sido carinhosamente tratado pelo SPD de Brandeburgo nas eleições para o Bundestag, sendo-lhe reservado um lugar de círculo de candidatura directa(i) em Potsdam, capital do Estado(ii). Anos depois, o seu nome passou a constituir anátema.
Nestas condições começaram a surgir sugestões concretas quanto ao nome que deveria substituir Scholz. Dado que este se mostrava sistematicamente prudente quanto ao envolvimento militar na Ucrânia, especialmente quanto à entrega de mísseis Taurus a serem empregues contra alvos no território da Federação Russa, entrando publicamente em divergência com o seu Ministro da Defesa, Boris Pistorius, com as chefias militares e dos serviços secretos, que parecem ter no horizonte o começo da III Guerra Mundial, com a sua belicosa Ministra verde dos Negócios Estrangeiros, com os liberais e com a CDU, onde Friedrich Merz luta há muito tempo por um futuro como chanceler (Friedrich Merz), poderia jogar-se a cartada ucraniana, substituindo Scholz por Pistorius(iii).
Entretanto a Alemanha veio a entrar claramente em 2024 numa situação de crise económica. País industrial e exportador por excelência, precisa de mercados abertos para funcionar. Para além de não ir crescer este ano, enfrenta uma crise de custos na siderurgia, e de mercado e custos na indústria automóvel e nas indústrias a montante desta. O encerramento de três fábricas do Grupo Volkswagen na Alemanha(iv), incluindo a de Dresden, na Saxónia já tão problemática, e as reduções de pessoal anunciadas por outros grupos empresariais são económica e psicologicamente catastróficas e os outros países que dependem do mercado alemão não ficarão imunes. Estas questões têm sido discutidas na Alemanha, sendo que o chanceler Scholz se tem mostrado inclinado a intervir em apoio directo a empresas.
À crise económica pareceu aliar-se uma crise orçamental. A Alemanha desde a hiperinflacção dos anos 1920 foge do deficit, sobretudo do que implique recurso a criação monetária, e criou na sua ordem interna travões de segurança contra desequilíbrios orçamentais. No exercício de elaboração do orçamento federal para 2025 Scholz e o então Ministro das Finanças Lindner, dos Liberais, concluíram ser impossível assegurar o financiamento anunciado à Ucrânia e respeitar as regras vigentes na ordem interna. Para mais Scholz preconizava o recurso à despesa pública para amortecer as consequências da crise e Lindner defenderia uma política de dinamização económica baseada no desagravamento fiscal. Quanto ao apoio à Ucrânia, Lindner defendia que a oferta de misseis Taurus, com maior alcance que os já disponibilizados mísseis americanos e britânicos, permitiria substituir os financiamentos prometidos à Ucrânia. No mesmo sentido se pronunciou a CDU, quando a coligação perdeu o concurso dos Liberais e se conheceram as razões. No entanto Scholz insiste na flexibilização da restrição orçamental.
A coligação governamental deixou de existir com o afastamento, pelo chanceler, de Lindner e dos ministros liberais. A CDU e o SPD consensualizaram o fim de Fevereiro para realizar eleições antecipadas, sendo que de qualquer forma estas teriam lugar em finais de 2025. As sondagens mostram que a CDU e Merz são mais populares que o SPD e Scholz. Mas também indicavam que Pistorius seria um candidato a chanceler mais popular que Merz.
Portanto, todos contra Scholz.
Convém todavia registar que:
- Scholz terá actuado inicialmente com ponderação aquando do eclodir, em 2022, do conflito armado entre a Federação Russa e a Ucrânia, mas, recordou recentemente, a Alemanha é hoje em dia o país europeu que mais financia a Ucrânia;
- o ostracismo lançado por um assessor do Presidente ucraniano contra o Presidente alemão Franz – Walter Steinmeier, acoimando-o de pró-russo (fora vice-chanceler de Gerard Shroeder e por duas vezes ministro dos negócios estrangeiros, dando-o como insusceptível de ser convidado para visitar a Ucrânia(v), mereceu uma resposta firme de Scholz, que também não foi fazer a popular romaria a Kiev enquanto a posição ucraniana não foi corrigida;
- a posição sobre os Taurus foi mantida contra tudo e contra todos, em nome do desejo de não criar riscos para a Alemanha(vi);
- no meio das declarações públicas que foram sendo produzidas, o chanceler deixou cair que estava inclinado a telefonar a Putin, os serviços do destinatário fizeram constar não terem ainda recebido qualquer tentativa de contacto, mais tarde a conversa veio a ter lugar, amplamente publicitada embora obviamente inconcludente, mostrando que com Scholz a Alemanha conserva a sua capacidade de manobra;
- muito recentemente foi Scholz que terá dado a resposta mais tranquilizadora aos gritos desesperados de Zelenski,(vii) enviando-lhe meios antiaéreos.
Entretanto com o atentado de Solingen o governo de Scholz activou durante seis meses a possibilidade de estabelecer controlos nas fronteiras, embora no caso concreto o que terá funcionado mal fosse a possibilidade prática de devolver um candidato a refugiado recusado à procedência que neste caso era outro país da União Europeia.
Não é certo que nas eleições previstas para Fevereiro a causa de Scholz esteja perdida:
- o partido dos liberais (FDP), em acentuado declínio eleitoral, estava a preparar uma estratégia de ruptura pública encenada para a qual até já escrevera textos, que agora vieram a público provocando a renúncia de alguns dos seus dirigentes
- os Verdes, que também têm perdido apoio eleitoral, e que no actual governo detinham não só o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que tinha sido o de Jocka Fisher quando o partido iniciou as suas experiências na área do poder, e que é assegurado por Annalena Baerbock; mas também o Ministério da Economia e a Vice-Chancelaria; posição detida por Robert Habeck, que é agora o candidato a chanceler e que não restringe possibilidades de alianças;
- o partido social democrata renova a candidatura de Olaf Scholz, não tendo Pistorius ousado contestar a liderança do seu ainda chefe.
A flexibilização das despesas públicas, defendida por Scholz irá ser certamente falada na campanha. Sendo muito duvidoso que a CDU, ainda que ganhe, consiga governar sozinha muitos desfechos poderão ocorrer e no limite até a reedição de uma grande coligação.
Importa referir também a importância que poderá ter a votação no Die Linke, que, caso tenha menos de 5% dos votos, só poderá manter-se no Bundestag se também eleger em (julgo) pelo menos três círculos eleitorais uninominais (em 2021 foram 2 em Berlim e 1 em Leipzig), e na BSW, que tendo uma implantação recente, só entrará se conseguir manter uma votação da ordem da que alcançou nas eleições para o Parlamento Europeu que, recordo, foi da ordem dos 6%, embora as sondagens alimentassem expectativas de um resultado superior.
Confesso que tenho estado sobretudo atento ao impacto que a disputa pode ter num partido nacional, ou seja o Bloco de Esquerda. A recentemente eleita eurodeputada Catarina Martins fez ampla publicidade das expectativas (ou desejos) de criar a nível europeu um partido, cuja escritura já foi assinada, que viria a englobar o Die Linke o qual ainda conserva uma representação reduzida no Parlamento Europeu. A Bündnis Sahra Wagenknecht é vista como uma ameaça e por isso recentemente Jorge Costa desfere-lhe um ataque em artigo publicado no Esquerda Net, no qual cita um dirigente da BSW de um dos estados do Leste da Alemanha que terá afirmado que a BSW se situava “à esquerda da CDU e á direita do SPD”. Ainda mais recentemente Francisco Louçã publica um artigo no Público no qual foi colunista antes de se transferir para o Expresso, em que criticava a “esquerda conservadora” da Alemanha.
As declarações de Catarina Martins, que insistem na posição em relação à Ucrânia, conduziram-me a reler um apontamento muito completo da Wikipedia sobre o Die Linke The Left (Germany) e a ponderar as referências à presença no partido de militantes com sentimentos favoráveis à União Soviética e à Federação Russa (do dirigente histórico Gregor Gysi) e às Repúblicas Populares de Donetz e de Lugansk, sendo que para a criação para a criação destas últimas contribuíram militantes do proibido Partido Comunista da Ucrânia. O Die Linke está aliás organizado por tendências e poderá não ser fácil alinhá-lo, sem qualificações, pelas posições do BE e outras formações. Quanto às referências de Jorge Costa e Francisco Louçã, os debates e negociações que têm decorrido na Turíngia, na Saxónia e no Brandemburgo para a formação dos governos estatuais, nenhum dos quais estava definitivamente fechado à data em que finalizo a redacção do presente artigo podem dar uma visão mais exacta das relações entre forças partidárias.
Há um pormenor assaz curioso: a esquerda alemã adoptou toda um modelo de liderança dos seus partidos por dois co-presidentes que o Bloco quis transpor para Portugal, falhando.
Inversamente, no que respeita ao Die Linke e à BSW, que vão disputar na Alemanha o mesmo eleitorado e talvez lutar ambos pela sobrevivência, não valerá a pena perder tempo com ataques inspirados em considerações próprias do terreno português: em eleições muito polarizadas nem sequer se pode excluir que um e outro fiquem fora do Bundestag.
Notas
(i) Os lugares de eleição directa, maioritária, por um círculo são mais apreciados pelos políticos que os lugares de eleição proporcional. Tanto a nível federal como de Estado é comum que o chefe se candidate a um lugar de eleição directa mas simultaneamente, prevenindo a hipótese de não ser eleito, surja também como cabeça de lista na eleição proporcional.
(ii) Aquando da reunificação alemã ficou previsto que Berlim pudesse reunificar-se com o Brandeburgo, voltando a ser a sua capital. Em referendo verificou-se que em Berlim uma (curta) maioria estava de acordo mas o Estado rejeitou a solução.
(iii) E foi esse nome que veio a surgir na newsletter de Teresa de Sousa que circula periodicamente entre os assinantes do Público.
(iv) O processo do grupo Volkswagen é mais complexo porque inicialmente os sindicatos partiam do princípio que o emprego estava assegurado e iriam negociar aumento de salários e neste momento até aceitação reduções de salários desde que o emprego seja preservado.
(v) Na Ucrânia os assessores de Zelenski valem mais do que os Ministros.
(vi) Como entretanto a Ucrânia anunciou ir dispor de misseis de fabrico próprio com o alcance de 700 km, talvez a questão fique ultrapassada.
(vii) Apesar dos salvíficos F – 16 as infraestruturas energéticas ucranianas voltaram a ser copiosamente bombardeadas.