Por vezes reparo na forma de identificação daqueles que, de forma geralmente corajosa, subscrevem posições públicas. Uma vez ou outra foi esse o caso de Miguel Prata Roque, que se identifica como Professor de Direito e ex-Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. O qual, sendo, pelo que percebia, da área do Partido Socialista, parecia sobretudo acautelar posições de princípio, com desprezo por tacticismos. Recordo, entre outras, a posição assumida em 2021 contra a anunciada dissolução da Assembleia da República por ter recusado na generalidade a proposta de Orçamento do Estado, quando a Lei de Enquadramento Orçamental apontava para a apresentação de uma nova proposta.
Recentemente recolhi na Internet informação diversa, de onde decorre que, após a licenciatura em Direito, Prata Roque foi exercendo actividade profissional em gabinetes de membros do Governo ou como advogado e que, quando se formou o primeiro governo de António Costa e exerceu funções como Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros a partir da formação do Governo em finais de 2015 tendo saído em de 2017. Parece – me um período invulgarmente curto, não sei se cessou por necessidades académicas(i) ou por incompatibilidade de temperamentos, mas ainda recentemente Prata Roque, que é comentador televisivo indicado pelo PS ridicularizou medidas organizativas anunciadas pela nova gerência explicando que essas medidas já tinham sido tomadas no ciclo político anterior por ele, como Secretário de Estado.
Daí que não me tenha surpreendido que, quando da denúncia à PGR a propósito das reacções do Chega à morte de Odair Moniz, que veio a reunir diz-se que 100 mil assinaturas de apoio, Prata Roque tenha emergido como o redactor de referência da denúncia, a qual qualifica de forma muito precisa as condutas que podem ser tratadas como apologia do crime, incitamento ao crime, ofensa a memória de pessoa falecida, e outras que de momento não tenho presente, mas também tem a precaução de as ligar com a vontade real subjacente à criação daquela formação política(ii).
Neste contexto, as declarações do Presidente da Câmara de Loures e recém eleito Presidente da Federação da Área Urbana de Lisboa do PS, Ricardo Leão mostraram a vários títulos uma sensibilidade muito diferente, independentemente dos direitos que o município possa ter perante os utentes de habitações sociais da propriedade daquele.
- passou-se de o ”ser socialista é ser pelos pobres” (Henrique de Souselas em A Morgadinha dos Canaviais) para o ser socialista é vigiar os pobres e “sem dó nem piedade” pô-los a dormir ao relento no caso de se portarem mal (iii).
- pede-se a ajuda do partido de André Ventura, denunciado por muitos socialistas perante o Ministério Público, para expressar esta ideia no Regulamento Municipal.
Para além de, parece, se terem feito, referências elogiosas à gestão PSD/CDS da Câmara de Lisboa e ao seu presidente Carlos Moedas.
Ricardo Leão apoiou-se no Chega e no PSD para ratificar estas posições em Loures embora tenha percebido ter ficado sem condições para manter a presidência da FAUL.
Não pareceu ser nada de extraordinário que Miguel Prata Roque tivesse apresentado de imediato a sua candidatura ao lugar de Presidente da FAUL, que assim ficara vago; que tenha aproveitado para escrever uma carta aos militantes com propostas sobre a preparação das eleições autárquicas – não sendo, vincou, conhecida ainda a solução para Lisboa – e sobre a necessidade de uma maior ligação às populações, em parte reproduzida em o Público de 13-12-2024(iv); que inclusive tenha, descrevendo as suas origens, chamado a atenção para a necessidade de quem intervém na política criar meios para desenvolver uma vida profissional autónoma. De notar que tendo-se enraizado na vida política e associativa uma tradição de valorizar as candidaturas através da indicação de mandatários prestigiados, também assegurou o apoio de um nome conhecido para sua mandatária, neste caso o de Isabel Soares. Recordemos que decorre o centenário de Mário Soares.
Pelo que veio a público, o establishment da FAUL nunca aceitaria Prata Roque. Dois dirigentes estariam dispostos a candidatar-se contra ele. Acabou por se favorecer uma solução dita mais consensual, candidatando Carla Tavares, Presidente da Câmara da Amadora, sucessora, creio, de Fernando Medina no Conselho Metropolitano e na Presidência do Conselho de Administração que ficou a gerir a Carris Metropolitana e que fora eleita em Junho para o Parlamento Europeu como sexta candidata da lista construída pelo Secretário-Geral(v), Pedro Nuno Santos, apresentando-se como mandatária Mariana Vieira da Silva, que como Ministra da Presidência fora nº 2 de António Costa no Governo. Um nome fortíssimo, portanto.
Os resultados foram logo conhecidos e divulgados com grande uniformidade julgo que através da LUSA “Carla Tavares obteve 2402 votos (71%) e Miguel Prata Roque 991 (29%), sendo o universo de militantes com capacidade eleitoral de cerca de seis mil pessoas”. A vencedora, ao candidatar-se, teria dito que o objetivo era “a coesão, a união e o fortalecimento” do partido, pretendendo “trabalhar para que o PS tenha um bom resultado no contexto das autárquicas” deste ano. Eleitoralmente, o atrevido outsider teria levado uma tareia. Ou não? Há aqui vários aspectos a considerar.
Em princípio os lugares nas listas para o Parlamento Europeu são cobiçados como um prémio (e às vezes utilizados para arrumar indesejáveis) mas é muito raro o regresso, com renúncia ao mandato, e avanço do nome seguinte da lista. Quem regressa vem para Ministro ou coisa que o valha. Assegurar um cargo executivo na estrutura partidária a partir do lugar de eurodeputado é, se não inédito, pelo menos muito raro, e de duvidosa funcionalidade.
É certo que na lista organizada por Pedro Nuno Santos uma situação, não sei se inesperada, tinha surgido. O jovem socialista colocado na lista em quarto lugar e já eurodeputado candidatou-se a Secretário-Geral da JS no Congresso posterior. Não sei como explicou a sua visão do futuro. Mas uma camarada disputou a eleição e ganhou. Ele continua como eurodeputado.
Como vai Carla Tavares dirigir a FAUL a partir de Bruxelas? Será pelo menos complexo, tanto mais que o Vice-Presidente que ficou a substituir o demissionário Ricardo Leão se recusa a continuar. E o exercício de funções executivas nacionais por Eurodeputados é mal visto pelo Parlamento Europeu. Foi aí que nasceram os processos contra o agora falecido Jean- Marie Le Pen e a sua filha Marine.
Entretanto o Observador de 11-1-2015(vi) resolveu analisar os resultados eleitorais por concelho e divulgar alguns. Dele retirei que Prata Roque ganhara nas concelhias de Vila Franca de Xira, de onde é originário, Cascais e Mafra, e Carla Tavares nas restantes, ou sejam as três maiores: Lisboa, Odivelas, Loures, e ainda em Sintra, Oeiras, Amadora, Arruda e Azambuja. Nem todos os números foram publicados mas é curioso ver que Prata Roque é extremamente mal acolhido nos concelhos de Odivelas (55 em 486, ou seja 11, 3 %) e de Loures (80 em 720, ou seja 11,1%), aliás recomendo que nunca recorra a uma habitação municipal neste último enquanto Leão for presidente. A situação contudo foi diferente em Lisboa (294 em 676, ou seja 43,5%) e até em Sintra (91 em 228, ou seja 39,9 %).
Aliás, a situação política do PS no concelho de Lisboa parece, pelo menos aos não iniciados, um tanto confusa: após a saída de Medina na sequência da não reeleição como presidente da câmara pela coligação PS – Livre, os 6 eleitos pelo PS são três, militantes, três, independentes dos Cidadãos por Lisboa (há um sétimo vereador eleito pelo Livre); o presidente da concelhia e presidente da Junta de Freguesia de Alcântara Davide Amado envolvido num processo judicial alheio, ao que percebi, ao âmbito autárquico, cedeu o lugar a Marta Temido, que foi logo encarada como promissora futura candidata a presidente da câmara até… voar para Bruxelas(vii). Muito recentemente a concelhia tirou a confiança política à presidente da Junta de Freguesia dos Olivais que reagiu passando a independente(viii). Entretanto o Presidente da Junta de Freguesia de Marvila, eleito pelo PS, foi condenado judicialmente, tendo o Tribunal determinado a perda de mandato. Sempre atento, o indomável Miguel Prata Roque sugeriu que igualmente fosse retirada neste caso a confiança política.
Finalmente, a indicação de Mariana Vieira da Silva como mandatária parecia indicar que poderia ser essa uma solução para a futura candidatura à Câmara de Lisboa, em relação à qual o PS teria estado a ensaiar nomes – como o do ex-Ministro Pedro Siza Vieira – a ver como eram acolhidos pela opinião pública.
Surgiu-me a ideia de que poderia estar no seu caso subjacente uma candidatura à Câmara de Lisboa, o que depois de Costa e Medina representaria um reatar do “Costismo” após uma breve interrupção com Carlos Moedas. Veio-me entretanto à memória o episódio do novo Aeroporto de Lisboa: António Costa, depois de se ter batido pela aprovação dos grandes investimentos por maioria de 2/3, suscita uma intervenção de Mariana Vieira da Silva defendendo abertamente que a solução do novo aeroporto fosse a defendida pelo PSD, que na altura, ao que se supunha, era a do Montijo a que o PS e as suas câmaras da Margem Sul se estavam insistentemente a colar.
Desagradou-me nessa altura a intervenção, que qualifiquei como “ronronante”. Terá desagradado também a Pedro Nuno Santos, que fez o seu Secretário de Estado sociólogo publicar um despacho de orientação indicando como solução de fundo Alcochete e solução intercalar Montijo. António Costa revogou o despacho e obrigou o seu Ministro a um pedido de desculpas público. Da reunião de ambos com Montenegro vem a sair a Comissão Técnica Independente.
Não sei se este episódio, que fez muito mal à imagem dos envolvidos e à própria imagem do Partido Socialista, estará esquecido e ultrapassado. A escolha de Alexandra Leitão como candidata a presidente da câmara de Lisboa poderá sugerir que não. Entretanto os resultados eleitorais da FAUL para o concelho de Lisboa reforçaram o peso de Pedro Nuno no processo de decisão. De forma elegante, Mariana Vieira da Silva apoiou a escolha, sem negar ter estado interessada, mas tornando claro estar satisfeita com o seu trabalho como deputada e pedindo que não a convidem para outros cargos.
Eleitor por Lisboa, previ há quatro anos num grupo do Fb que Carlos Moedas poderia bater Fernando Medina tendo em conta a coligação entre PSD e CDS (e a não aposta clara do CH e IL no processo) e a falta de uma coligação à esquerda, programaticamente sustentada e extensiva às freguesias. Sobre Moedas, fizera o possível por rentabilizar o seu desempenho como Comissário Europeu da Investigação e Administrador da Gulbenkian e fazer esquecer a sua acção como “troico” e responsável pela ESAME. Grande reacção entre os participantes socialistas do grupo, um dos quais me qualificou como “segurista”. Viu-se …
Quatro anos depois, e mantendo-me eleitor por Lisboa, tenho muito menos inter-acções com outros residentes no concelho, incluindo vizinhos na minha freguesia, agora dirigida por um presidente do CDS e de que André Ventura é eleitor. Desconheço qual a receptividade efectivamente encontrada por Moedas. CH e IL não abriram ainda o seu jogo. No PS está tudo por fazer – discussão programática, negociação de alianças, saneamento de escândalos nas freguesias. Não obstante, ficarei atento.
Notas
(i) Tinha-se doutorado em 2014.
(ii) Embora o Tribunal Constitucional não tivesse encontrado no Programa e nos Estatutos nenhuma estipulação incompatível com a lei dos Partidos, a representação do Ministério Público no Tribunal Constitucional, que até ao seu falecimento foi, julgo, assegurada pela ex-PGR Joana Marques Vidal, tem forçado a anulação de uma série de medidas de organização interna ofensivas do princípio democrático.
(iii) Incluindo o de ocuparem imóveis degradados sem título, como no caso de uns São Tomenses que estiveram quase a ser corridos sem solução da Segurança Social e diziam que os portugueses não eram tratados assim no seu país.
(iv) Prata Roque escreve aos militantes do PS-Lisboa recusando “vícios” que corroeram essência do partido
(v) O presidente que lhe sucedeu na Amadora tem gerido com discrição o mandato e as implicações do caso Odair Moniz, tendo outro dia almoçado na Cova da Moura com os presidentes da república portuguesa e de Cabo Verde; na área metropolitana de Lisboa foi, creio, sucedida pelo presidente da Câmara de Sintra, Basílio Horta.
(vi) Pesquisa: miguel prata roque secções concelhias de lisboa
(vii) Davide Amado terá ficado em princípio livre do processo judicial, e regressou ao cargo mas a situação ter-se-á alterado.
(viii) Presidente da Junta dos Olivais passa a independente na Assembleia Municipal de Lisboa