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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Quem tem medo de Varoufakis?

Mendo Henriques
Mendo Henriques
Professor na Universidade Católica Portuguesa
Mendo Henriques
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa

Vou começar este artigo pelo fim: quem tem medo de Varoufakis são os medrosos e nem me atrevo a trocar uma única letra desta palavra. O leitor descobrirá porquê. Mas para chegar a esta conclusão é preciso seguir o raciocínio do homem que desafiou a União Europeia…e perdeu. Perdeu uma batalha mas talvez tenha dado a fórmula para ganhar a guerra.

Vivemos em bancorruptocracia, começa por dizer Varoufakis, no seu livro Minotauro Global. A diferença é que os americanos não operam com as deficiências da zona euro e não têm de se preocupar com o abraço de morte entre as dívidas soberanas e as perdas dos bancos. A Europa tem de lidar com um Banco Central problemático e com um banco central alemão que trata os PIGS da zona euro como terras de austeridade, fora das leis da macroeconomia.

O debate na Europa dos burocratas centra-se em questões técnicas: deverá haver “condicionalidade” nas compras de títulos pelo BCE? Deverá o BCE supervisionar todos os bancos da Europa, ou apenas os “sistémicos“? Estes debates feitos em crioulo financeiro escondem perguntas tão decisivas para o futuro da Europa quanto as que determinaram os tratados de Vestefália , Viena ou Roma . São questões que determinarão se a Europa se mantém junta ou sucumbe às forças desencadeadas pela crise de 2008.

As perguntas do BCE reflectem uma realidade trágica mas podem ser resumidas numa fórmula simples: a Europa está a desintegrar-se porque a sua arquitectura não aguenta as ondas de choque provocadas pelos estertores do capitalismo neoliberal centrado em Wall Street, e que fizeram o mundo pagar tributo entre 1971 e 2008.

Com a crise de morte de 2008, e com a falta de dinheiro em Wall Street, a Europa caiu de joelhos. Mas a insolvência de Lisboa, Madrid, Atenas, Dublin e Roma não resulta da prodigalidade fiscal, do “gastámos acima das nossas posses” de Passos Coelho: a Espanha tinha dívida menor do que a Alemanha em 2008; a Itália tem défices orçamentais pequenos. A insolvência –“o não há dinheiro” de Vítor Gaspar – resultou do fim da festa neo-liberal e da globalização, em que a economia da zona do euro dependia da procura das suas exportações líquidas pelo capitalismo global.

O abraço de morte entre bancos falidos e estados insolventes – Grécia, Irlanda, Portugal, Itália e Espanha – o “salvar os bancos em vez de salvar empresas e famílias” é uma das facetas da crise. A outra é o capitalismo com respiração artificial, com o BCE a comprar os títulos de estados cotados por agências financeiras privadas.

E porque nada faz a Alemanha para solucionar a crise do euro? A narrativa que nos é servida é que a Alemanha e outros estados do norte não querem pagar as dívidas dos países periféricos e resistirão a qualquer tentativa de união fiscal ou união bancária até estar convencida de que os parceiros terão finanças responsáveis. É a fábula da cigarra e da formiga. A Alemanha escapou da crise pela sua frugalidade e trabalho;  os mediterrânicos perdulários não previram o inverno financeiro. E as formigas boas devem punir as cigarras más

Esta mentalidade oculta a grande razão que mantinha a zona do euro saudável e a Alemanha excedentária antes de 2008: o capitalismo neo-liberal permitiu aos países do norte, como a Alemanha, permanecer exportadores líquidos de bens de capital e bens de consumo, dentro e fora da zona do euro; ao mesmo tempo, os países periféricos do euro importavam esses bens, financiados pelos dólares norte-americanos.

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Segundo Varoufakis, só há uma solução para evitar a acumulação de excedentes sistemáticos nuns países e deficits persistentes noutros: criar um mecanismo de reciclagem dos excedentes, como já Keynes propôs em Bretton Woods à escala global em 1944.

As nações reciclam os seus excedentes de duas maneiras: redistribuem riqueza através de transferências directas, pagando serviços e rendas a cidadãos carenciados com o dinheiro dos impostos; e promovem investimentos directos, com fábricas e equipamentos em regiões deprimidas.

O problema com as uniões monetárias – como a Argentina aprendeu em 1990 e a Europa após 2008 – é que os fluxos internos de comércio e de capital podem permanecer desequilibrados durante décadas. Há sempre o risco de Lisboa permanecer mais rica do que Trás-os-Montes, Estugarda do que a Pomerânia, ou a Califórnia do que o Arizona.

Para esses desequilíbrios não serem crónicos, alguém deve ceder. Quando havia moedas nacionais na Europa, a taxa de câmbio encarregava-se disso: o superavit da Alemanha era compensado pela desvalorização gradual de dracmas, liras e escudos face ao marco.

Com o euro como moeda comum, o caso mudou de figura. É preciso um mecanismo de reciclagem dos excedentes, uma ideia retomada por Varoufakis que tem  sido apoiada por economistas como Davidson e Stiglitz.

Os Estados Unidos são uma bem-sucedida união monetária porque têm dois sistemas de reciclagem dos excedentes: 1) as transferências para os cidadãos; 2)o complexo militar-industrial: quando a Boeing ou a General Dynamics ganham um contrato do Pentágono, têm que localizar a produção num dos estados deficitários.

Enquanto os países superavitários da Europa não encontrarem mecanismos semelhantes que sejam interessantes pois ganham mercados para as exportações; e enquanto não estiverem dispostos a trocar a supremacia de curto prazo pela sustentabilidade a longo prazo, continuará o longo e doloroso processo de desintegração.

Varoufakis perdeu a batalha de 2015 contra a bancorruptocracia. Iremos agora todos perder essa guerra?

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