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Quinta-feira, Dezembro 26, 2024

Confissões iniciais sobre a (minha) morte e a (minha) liberdade – Parte 2

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

Continuamos com este artigo a nossa reflexão sobre a eutanásia e o suicídio assistido, iniciada no artigo anterior.

Aborto e eutanásia: questões ligadas, questões silenciadas

Com efeito, para o melhor e para o pior, para esclarecer ou para confundir, o que é certo é que as questões do aborto e as questões da eutanásia têm surgido ligadas.

Embora se possa e se deva discutir a concepção ideológica e filosófica da vida que está subjacente às posições em debate, trata-se de decisões sobre a vida nos seus momentos extremos, cronológicos e ontológicos. Enquanto decisões e procedimentos que afectam a vida, compreende-se que possam surgir ligadas.

Contudo, na ausência de um debate em Portugal sobre a eutanásia e o suicídio assistido, tem sentido que, após a discussão sobre o aborto, nos proponhamos fornecer elementos para reflectir sobre o fim da vida e as situações e decisões que lhe estão associadas. Aqueles que defenderam posições pró-aborto aparecem, na maioria das vezes, a defender a eutanásia e o suicídio assistido.

De tal maneira as posições surgem associadas que apareceu como contraditório defender-se a interrupção voluntária da gravidez e atacar a eutanásia e o suicídio assistido, defender o fim de uma hipotética vida e colocar-se contra o fim de uma vida degradada[1].

Noutros países, o debate sobre o aborto arrastou associado o debate sobre a eutanásia. Os adversários da interrupção voluntária da gravidez, esgrimindo a bandeira da defesa da vida, tentaram sempre avisar que, uma vez legalizado o aborto, seria a vez da eutanásia ser também legalizada. Na continuação dessa argumentação, os adversários da IVG vinham também agitar o perigo da ladeira escorregadia, isto é, que uma vez legalizadas ou despenalizadas aquelas práticas, entraríamos numa espiral inevitável de recurso maciço à IVG e à eutanásia.

Ora, os números desmentem facilmente esse argumento, visto que não aconteceu nenhum aumento assustador de recurso à IVG e à eutanásia nos países em que houve alterações legislativas favoráveis à despenalização desses procedimentos. Contudo, associar aborto e eutanásia enquanto processos atentatórios da vida continua a ser uma prática recorrente, mesmo utilizando argumentos perfeitamente mistificadores.

No início de 2007, no seu discurso de ano novo, o então papa Bento XVI afirmou que a eutanásia e o aborto eram formas contemporâneas de terrorismo contra a vida, afirmação que foi secundada pelo chefe máximo da igreja católica portuguesa. Seriam formas de terrorismo na medida em que constituiriam atentados contra a vida.

Tratava-se duma posição, embora mais radical, mas que secundava a que já fora assumida por João Paulo II, em 1995, na sua carta encíclica Evangelium Vitae, onde se denunciava a própria medicina que, alegadamente, contribuiria também para estes novos atentados contra a vida humana.

Ora, em primeiro lugar, estas afirmações devem ser entendidas num contexto de luta ideológica e propagandística da Igreja contra os muitos movimentos de cidadãos e activistas dos direitos humanos que pretendem integrar os direitos à interrupção voluntária da gravidez e o direito à eutanásia e ao suicídio assistido no catálogo dos direitos humanos.

Poderíamos também entender aquelas afirmações radicais de Bento XVI como efeito de um estilo pessoal, estilo que a propósito de outros assuntos, enfurece de vez em quando os adeptos do Islão. Seja um adorno pessoal ou uma mera figura de estilo no contexto de luta ideológica, o que é verdade é que aquela afirmação em nada contribui para um esclarecimento sereno e lúcido dos valores em causa, mas apenas os mistifica nos seus intuitos propagandísticos.

Trata-se, de facto, de uma afirmação terrorista e não fica nada bem ao herdeiro de Pedro fazer afirmações que muito devem à Verdade.

É que a misericórdia que motiva aqueles que recorrem à eutanásia ou o sofrimento que acompanha aqueles que praticam o aborto ou o suicídio nada tem a ver com o instinto assassino de um terrorista. Como é possível, então, equiparar a eutanásia e o aborto ao terrorismo? Porque desprezam a vida? Nada mais falso! Deveríamos antes perceber de que vida estamos a falar…

Uma questão fundamental: decidir ou deixar que os outros decidam por nós?

O que pode ser considerado uma forma de terrorismo, em matéria de princípios de fé espiritual e de convicções pessoais, é retirar às pessoas alternativas que podem ser escolhidas no seu processo de vida. O que é censurável é retirar às pessoas a possibilidade de escolher e, assim, assumir a responsabilidade moral pelas suas palavras e actos.

Recorrer à interrupção da gravidez ou decidir-se por um procedimento eutanásico devem constituir práticas a que cada um, no exercício consciente da sua liberdade, deve poder assumir.

Pelo contrário, estigmatizar aquelas práticas condenando-as do ponto de vista moral e religioso e ainda penal é uma forma de exercício terrorista de redução da liberdade humana, quando é enquanto ser livre, decidindo o seu trajecto de vida, que consagramos a única forma de o homem assumir responsavelmente a sua condição e as suas opções.

Ronald Dworkin, professor americano da Universidade de Nova Iorque na área da filosofia do direito e da filosofia política, designa como uma questão crítica de natureza político-constitucional a de saber se a sociedade (ou o legislador fundamental, diríamos nós) opta pela coerção ou pela responsabilidade em relação aos cidadãos.

Ora, para nós, estamos diante de uma questão crítica fundamental: a de saber se devemos impor um caminho impedindo legalmente uma ou várias soluções ou permitimos que, pela despenalização dos procedimentos eutanásicos, cada um possa decidir o caminho que quer seguir, responsabilizando-se pelas opções que tomar.

Uma sociedade democrática adulta e evoluída é aquela que, em matérias do foro da consciência individual e que pertencem ao nicho de intimidade de cada um, não impõe uma resposta e uma conduta, manipulando as consciências, mas antes deixa que cada um possa decidir de acordo com as suas convicções e valores próprios.

Uma democracia evoluída não ousa estabelecer à partida quais são os caminhos que cada um deve seguir em matérias do foro pessoal; uma democracia evoluída não é aquela que se apresenta com as soluções, mas antes estabelece os vários caminhos que conduzem às soluções, aos consensos e mesmo aos erros, permitindo que os cidadãos ensaiem as soluções que escolhem a partir do espaço público da discussão.

O fundamental é que existam vários caminhos. Afinal, críticos de governos de partido único querem impor caminhos de único sentido?

Dworkin fala-nos duma questão crítica político-constitucional que será a de ter que decidir perante as opções que uma ’sociedade decente’ tem diante de si, isto é, ter que decidir sobre se “irá optar pela coerção ou pela responsabilidade, se tentará impor a todos os seus membros um juízo colectivo sobre assuntos do mais profundo carácter espiritual, ou se irá permitir e pedir a seus cidadãos que formulem, por si mesmos, os juízos mais crucialmente definidores da sua personalidade naquilo que diz respeito a suas próprias vidas.”[2]

Para lá do confronto de valores que lhe subjaz, trata-se duma questão política de fundo que deverá ser acautelada constitucionalmente. O problema da eutanásia e do suicídio assistido também passará por aí, como teremos oportunidade de ver, partindo duma reflexão sobre os direitos do homem.

[1] “Porquê, num certo sentido, este paradoxo, dois pesos e duas medidas? Porquê proteger a vida de um acamado ou de um poli deficiente que só deseja morrer, que suplica que o ajudem, mais do que aquela outra, intacta, maravilhosamente nova e misteriosa de um embrião, que mais não pediria — se pudesse pedir algo — que viver?”, André COMTE-SPONVILLE, «Amar a vida até ao fim», in HOUZIAUX (dir.), Deve a eutanásia ser legalizada?, Porto, Campo das Letras, pp. 24
[2] DWORKIN, Ronald, Domínio da Vida – aborto, eutanásia e liberdades individuais, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 305.

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