
A campanha publicitária do BE com o cartaz “Jesus tinha dois pais” sobre a livre adopção fez vir ao de cima o lugar do Cristianismo na praça pública. O interessante é que nada acontece por acaso, numa altura em que o Papa Francisco é cada vez mais escutado por todos, com ou sem fé. Para perceber as razões, creio eu que temos de voltar 20 anos atrás.
Em 1996, o então cardeal Ratzinger e agora pontífice emérito Papa Bento XVI, escreveu no seu livro Sal da Terra que a Igreja deveria consolidar-se em torno de um pequeno núcleo, em que o cristianismo voltaria a ser uma “semente de mostarda”. O Der Spiegel escreveu que Ratzinger queria abandonar as culturas tradicionalmente católicas (Volkskirche). Outros católicos conservadores também propuseram esta estratégia de bote salva-vidas face à marginalização da Igreja.
O Papa Francisco veio claramente mudar esta visão, sem modificar os ensinamentos da Igreja. A sua missão, alimentada pela sua evidente generosidade, tem sido mostrar que o Cristianismo não é um conjunto de ideias, nem sobretudo uma religião, mas sim uma vida. Quem a vive tem de ir ao encontro dos outros e tem que afastar quem prejudica essa comunhão.
Assim vemos o Papa comportar-se como uma pessoa normal, sem luxos nem manias, e que partilha a sua crença com os outros. Vive numa comunidade. Lava os pés a doentes. Criou no seu twitter as breves homilias diárias a partir de Igreja de Santa Marta. Enviou as suas cartas encíclicas. Prega a misericórdia. Foi a Ciudad Juárez, onde as drogas abundavam. Foi a Jerusalém reconhecer os Judeus como um povo da aliança do qual precisamos para converter o pagão que vive dentro de nós, e foi chamar a atenção que o problema palestino representa o fracasso do mundo em resgatar um povo humilhado e ofendido. Ao mesmo tempo, pegou no chicote do templo de Salomão para afastar os corruptos, os pedófilos e os tíbios que infestam as estruturas do Vaticano. E para causticar os adoradores do dinheiro.
Esta lista de iniciativas poderia continuar. O que nelas interessa é que a fé não é para ser demonstrada ou argumentada, mas vivida a sério. Esta é, afinal, a mensagem do Evangelho que ganhou novas forças com este Papa.
O impacto destas iniciativas não resulta da força de um aparelho. Em 2011, a Igreja Católica tinha 278.346 padres nas dioceses, 135.072 sacerdotes em ordens religiosas, como os jesuítas e franciscanos, e 713.206 freiras, ou seja, pouco mais de 400.000 pastores para cuidar de mais de 1000 milhões de crentes. Sociologicamente são recursos escassos, em comparação com os 70 milhões de membros do PC chinês que se ocupa de 1400 milhões de pessoas ou os 17 milhões de funcionários na União Indiana para 1100 milhões de pessoas.
O poder de influência do Papa – poder espiritual dizia-se no passado, soft power diz-se agora – tem impacto directo sobre um bilião de católicos, e é respeitado por uns 600 milhões de cristãos ortodoxos e evangélicos, e mexe com os sentimentos de mais de um bilião de muçulmanos. Ou seja, o Papa é uma voz especial para um terço da população mundial. Nenhum outro líder político ou religioso tem tanta força. E ao colocar na praça pública este seu apelo por um mundo melhor, respondeu à marginalização da Igreja pela cultura dominante.
Essa marginalização é uma história ainda mais antiga. Há 200 anos o escritor alemão Jean Paul interrogou-se por que razão Deus morreu deixando-nos a sua sombra. O marquês de Sade escreveu aos franceses da Revolução Já matastes o vosso rei, falta-vos matar o vosso Deus. Um século mais tarde Friedrich Nietzsche insistiu que Deus estava morto. Em 1914, a Europa já só acreditava nos nacionalismos e a Grande Guerra encarregou-se de desfazer as dinastias e liquidar as lealdades antigas de famílias, tribos, igrejas e nações, as mesmas lealdades hoje em crise no turbulento mundo islâmico. Entretanto, os biólogos reduziram a mito a história bíblica literal da criação. A crítica demonstrou a múltipla autoria das escrituras hebraicas. A ciência apresentou-se como a alternativa racional à religião. Excepto para os recalcitrantes, a fé tradicional era para esquecer e a cultura dominante marginalizou a Igreja
Derrubados velhos deuses em 1918, a Europa começou a adorar os novos deuses do comunismo e do nazismo. Após meio século dominado pela luta implacável entre os totalitarismos e a democracia, veio a queda do comunismo na Rússia em 1989. Mas não chegou o paraíso na terra nem o fim da história. A democracia sem visão de fraternidade entregou cada país a si mesmo. A democracia global neo-liberal trouxe apenas um emaranhado de regulamentos sobre circulação de mercadorias, protecção dos direitos de propriedade intelectual, limitações da força de trabalho e subsídios ambientais – afinal os elementos que afectam o comércio internacional. Entretanto, deixou o dinheiro à solta. Nesta selva de interesses, a única lição que emerge é que cada país, cada organização e cada pessoa deveria cuidar de si próprio, para sobreviver.
Face a esta lei da selva, o papa Francisco vem dizer que não vale a pena cuidar de nós próprios se não cuidarmos dos outros e em particular, dos mais fracos e desprotegidos, os injustiçados, os pobres e a natureza. Escolheu chamar-se Francisco. E após mais de 200 anos com agentes funerários a tentar matar Deus, veio dizer que a vida tem sentido porque há vida eterna, porque há Deus. Mexe com todos. Até mexeu com quem fez o cartaz do BE.
Não é preciso acreditar em Deus para ser movido pelas palavras do Papa Francisco para quem a violência impede a justiça social e a justiça impede a violência social. É uma mensagem ao mesmo tempo, simples e profunda: preocupar-se com a vida, preocupar-se com quem sofre, e todos nós acreditamos que sofremos. E preocupar-se que a grande ameaça ao mundo actual vem do ressurgimento do pagão que vive dentro de cada um de nós, com os fundamentalismos do corpo, das ideias, das nações ou das religiões.
Nota final. Aos ateus e aos agnósticos perplexos com estes temas, recomendo que leiam o livro A Estrela da Redenção, do judeu Franz Rosenzweig. Mas faço uma ressalva: pode curá-los do ateísmo e do agnosticismo.