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Sábado, Dezembro 21, 2024

Rabo escondido com o gato de fora: a hipocrisia à volta da eutanásia

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

A hipocrisia classifica um comportamento que tenta negar, jurando a pés juntos, uma realidade que toda a gente sabe que existe, apesar de, oficialmente, se negar a sua existência. É qualquer coisa como tapar o sol com a peneira, sendo que quem usa a peneira serve-se duma falsa linguagem moralista e bem-intencionada para fazer crer que o Sol não existe.

Ora, tal como a propósito do aborto e do debate sobre o aborto entre nós , também a questão da eutanásia e do suicídio assistido está coberta com o manto vergonhoso da hipocrisia que consiste em fingir que o problema não existe, quando, de facto, “na prática hospitalar a eutanásia indirecta é um facto consumado”[1].

Não podemos ocultar ou virar as costas ao problema que resulta duma situação silenciada de se praticar a eutanásia diariamente nos nossos hospitais, mesmo duma forma indirecta.

Até aos anos 80, em França, prevalecia uma verdade oficial que tentava tapar o sol: que nunca foi praticada nenhuma forma de eutanásia, nem activa, nem passiva, nem consentida, nem imposta, nem directa, nem indirecta.

Era esta a situação decretada oficialmente. Era a verdade oficial. Era o gato de fora com o rabo escondido. Até que…

Em Portugal, a situação deverá ser semelhante. O debate sobre a eutanásia não se fez até agora porque o ambiente também está contaminado por este comportamento hipócrita. Apesar da lei penal, a eutanásia e o suicídio assistido existem e praticam-se de forma discreta, mesmo em Portugal.

Aliás, entre nós, com a escassez de recursos no sector hospitalar e da saúde, haverá sempre alguém incumbido de desligar a máquina, por esta ser precisa para um doente urgente acabado de chegar. Imagine-se a situação seguinte: um doente em fase terminal e com uma doença irreversível está ligado a uma máquina de suporte vital. Só esta máquina é que o mantém ligado à vida, de outra forma morreria.

Entretanto, chega um doente urgente, com hipóteses de sobreviver e recuperar alguma qualidade de vida, embora, no imediato, necessite de ser ligado à máquina. Só existe aquela máquina. Que fazer? O que imaginam que se tem feito? Desculpamo-nos com a empregada de limpeza que teve de desligar a máquina para ligar o aspirador?

Deixamos morrer o doente que tinha hipóteses, mas que chegou atrasado ao hospital? Estamos, portanto, a lidar com uma realidade que não podemos ignorar ou que só poderemos ignorar de uma forma hipócrita.

Por exemplo, nos serviços de reanimação, onde a maioria dos doentes num hospital acabam por falecer, o pessoal médico tem que muitas vezes decidir pela limitação ou suspensão dos tratamentos, parar a ventilação artificial ou suspender o tratamento que permite ao músculo cardíaco funcionar. Os médicos tomam uma decisão quando concluem que já não há nada a fazer e o doente, inconsciente, já não poderá despertar do seu coma profundo e irreversível. Trata-se de uma prática corrente de eutanásia passiva.

Para as autoridades ministeriais e/ou hospitalares não se pratica a eutanásia. Mais, existe um horror oficial e uma condenação veemente em relação a tal prática. Mas, tal como em relação às bruxas, o que é verdade é que a máquina se desliga, até porque os recursos são escassos, o que em Portugal é ainda mais evidente.

Portanto, se a máquina se tem de desligar para admitir mais doentes, como se pode dizer que não existe eutanásia em Portugal? Não se pode considerar que não existe só porque ainda não saltou para as páginas dos jornais ou para os noticiários das televisões. Ou porque alguém diz que não existe. Existir ou não existir não depende da vontade ou duma declaração oficial.

A hipocrisia é tanto mais visível quando o argumentário contra a eutanásia é servido já requentado. Com efeito, este debate é a repetição de outros que já ocorreram no passado: por exemplo, a propósito do uso da pílula e da contracepção e da interrupção voluntária da gravidez.

A luta pela eutanásia é uma luta repetida. Em França, a propósito da eutanásia, reacenderam-se os mesmos argumentos, esgrimiram-se as mesmas forças e intervieram os mesmos actores que nos debates a propósito da contracepção e da interrupção voluntária da gravidez. Apesar de largamente praticadas, também estas práticas eram condenadas, em nome dos mesmos princípios morais e valores fundados no carácter sagrado da vida.

A Igreja e a Ordem dos Médicos, tal como na discussão sobre a eutanásia, classificaram como bárbaros os que estavam a favor e anunciaram consequências catastróficas no caso de aprovação das outras teses.

Mas se o debate da eutanásia se assemelhou aí a um “remake de filmes já vistos”[2], talvez se possa então antecipar o seu desfecho: é que, apesar da oposição daquela sagrada aliança, a legislação a favor da contracepção e a despenalização da interrupção voluntária da gravidez acabaram por vencer sem terem ocorrido as consequências catastróficas e imorais que eram agitadas.

Na falta de legislação e regulamentação tudo fica nas mãos dos médicos e do pessoal de enfermagem.

A falta de regulamentação, que decorre também da falta de coragem para regulamentar, permite a arbitrariedade, faz com que o destino dos pacientes fique dependente das convicções pessoais do pessoal médico.

Quando chegar a minha vez, se não for conhecida a minha vontade ou, sendo conhecida, não for ou não puder ser respeitada e continuarmos sem legislação nesta área, tudo vai depender da formação moral do médico que me calhar. Os meus últimos dias estão dependentes do acaso!… Estamos, de facto, diante de um vazio jurídico, que será preenchido por decisões casuísticas.

Mas a hipocrisia também se manifesta por aí: legislar seria abrir um processo de debate e discussão públicas. Ora, isso é o que precisamente se pretende evitar, preferindo-se, em alternativa, convocar à volta da questão, um conjunto de slogans moralistas, que apelam à emoção muito mais o que à reflexão. É preciso sair do vazio jurídico não para proibir e punir, mas para enquadrar as práticas discretas e ilegais que já existem, proteger as decisões solitárias daqueles que cedem (ou cederam) aos pedidos veementes e pungentes dos familiares e dos doentes desesperançados e submetidos ao sofrimento sem sentido.

Práticas que precisam se de ser reguladas para serem criados critérios e requisitos a serem observados para que os procedimentos saiam da clandestinidade e do acaso e ocorram nas melhores condições sanitárias, respeitando os direitos do paciente e dos seus familiares.

Debater o problema e pôr fim à hipocrisia

Temos assistido na Europa e nos Estados Unidos a um debate constante sobre a maneira de morrer (eutanásia e suicídio assistido), um debate que envolve questões médicas, filosóficas, jurídicas e políticas, e também psicológicas e culturais. Esse debate assume picos de intensidade quando alguns doentes, muitas vezes em fase terminal, em estado de coma irreversível ou paraplégicos, ou os seus familiares, reclamam a eutanásia e essa situação salta para os meios de comunicação.

Em Portugal, estranhamente, não há notícia entre nós de alguém ter reclamado a eutanásia para si. Embora ninguém duvide que existam doentes em fase terminal atravessando profundo sofrimento ou em coma vegetativo persistente ou em situação de desesperante paraplegia. Entre nós o silêncio é pesado, interrompido por pontuais declarações e publicações. Contudo, é preciso não esquecer que nos inserimos num espaço europeu onde esse debate existe, as organizações proliferam e as legislações nacionais vão sendo alteradas.

No nosso país, algumas organizações da área da bioética vão introduzindo alguns assuntos relacionados com a eutanásia e o suicídio assistido. Como também anunciam a sua intenção de vir a propor algumas iniciativas no campo legislativo. No entanto, outras organizações e personalidades preferem optar pelo silêncio. Todos reconhecem que se trata de uma questão complexa com óbvios custos políticos para quem atirar a primeira pedra.

Há, no entanto, que evitar e ultrapassar a hipocrisia que rodeia e encobre o problema. Várias vozes começam a manifestar-se e a tomar posição sobre o tema.

Para já, propondo a legalização do testamento vital, como foi o caso da Associação Portuguesa de Bioética. Ou anunciando o propósito de apresentar uma proposta no âmbito da despenalização da eutanásia e do suicídio assistido. Do lado dos que se opõem também se notam os primeiros sinais de incómodo por se falar nisso, empunhando, como sempre, a bandeira da defesa da vida, da qual se lembram de desfraldar nestes momentos mais radicais, enrolada que estava no fundo da dispensa desde a última manifestação.

Os políticos, sabiamente, adiam a tomada de posição. Mas sabem que não se pode adiar sine die e que, também a propósito deste problema, estamos na Europa.

Quanto a nós, pretendemos avançar com um modesto contributo para um debate que acabará, inevitavelmente, por acontecer. Avançar com este contributo para uma discussão na esperança de que os conceitos e os argumentos se clarifiquem e se consolidem e mobilizem os cidadãos para tomar partido. Uma exigência que começamos por colocar a nós próprios já que também sentimos essa necessidade por razões de ciência e de respeito no âmbito duma ética da discussão e de animação do espaço público, como factores de enriquecimento da nossa democracia e para as melhorias das condições de vida de cada um.

Este debate, em Portugal, ainda não existe, mas não lhe escaparemos. Porque não iniciá-lo desde já?

Afinal, há, neste momento, quem sofra e se debata consigo mesmo sobre o que fazer.

[1] CASADO GONZALEZ, Maria, La eutanasia: aspectos éticos y jurídicos, Madrid, Editorial Reus, 1994, p. 38.
[2] CLOSETS, François de, La Dernière Liberté, Paris, Fayard, 2001, p. 183.

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