Deixámo-lo trabalhar. Cinco vezes eleito pelo povo, uma vez derrotado, o homem que tinha dúvidas raramente, o professor Cavaco & Silva vai a descansar na próxima quarta-feira, depois de quase 40 anos de política activa.
Aprendiz de Thatcher, pensou que Portugal era a América, mas enganou-se. Tentou imprimir ao país um registo de capitalismo de rosto humano e saiu-lhe um país de oportunistas e bimbos. Nunca se arrependeu, mas é de crer que, lá no fundo, se identificasse pouco com o caos que deixou.
Aníbal Cavaco Silva não teve a visão do pântano em que ajudou Portugal a estar. A sua retórica contrita, o seu comportamento político só aparentemente austero, as guerras que comprou na sua liderança do país marcarão, durante décadas, a nossa estranha forma de vida.
As privatizações que começou não se subordinavam a qualquer plano estratégico para os sectores primário e secundário. A agricultura e a indústria sucumbiram durante a gestão dos seus governos, obcecados em transformar Portugal num lugar de serviços.
Colonialista na própria nação, combateu os estudantes, os polícias, os sindicatos, os progressistas e os liberais à força do bastão. A política financeira baseou-se em confiar demais em bancos geridos por boys partidários ou simples pulhas. A sua grande capa de brilhante economista e professor respeitadíssimo permitiu o descalabro do sistema financeiro duas vezes.
Cavaco & Silva mudou o nome da sua terra de “Poço” para “Fonte” – isto resume a sua personalidade. Uma pessoa que tem vergonha do nome da sua terra é uma pessoa que tem vergonha das suas humildes origens. Mas um poço é um poço, uma fonte é uma fonte. E bem se pode chamar poço à fonte que a nora não engana na hora do burro andar à volta.
Partidário, candidatou-se a Presidente porque, garantia, ou ele ou acabaríamos na bancarrota. Aconteceram as duas: ele e a bancarrota. Anti-comunista primário, como o eram os militantes originais do PPD, nunca conseguiu ver cair o muro.
O desnorte que o afectou com o nascimento da Terceira Via de Blair e com o extremismo dos Bush deixou-o sem pátria ideológica. No fim, os amigos que mais o defenderam sem terem interesses a defender, como Manuela Ferreira Leite, Marques Mendes ou Pacheco Pereira, afastaram-se dele e deixaram-no só.
Caídos em desgraça, os Dias Loureiros desta vida, esses, não se afastaram.
Cavaco & Silva será recordado como o homem das autoestradas, o que será injusto. Ele foi muito mais em Portugal.
A revolução fiscal, a abertura do espaço aéreo à comunicação social privada, o fim do apartheid no Estado e a tentativa de sarar a guerra público contra privados teve o seu mérito. Mas foi poucochinho para 40 anos de poder.
Há quem tenha saudades de Cavaco Silva. Sinceramente, desde 1991 que julgo que Cavaco terá saudades dele mesmo e do homem que foi no Outono de 1985. Mas isso é psicanálise, a fazer na vivenda MariAni, já defunta, com um sofá na marquise e vista para a fonte. Ou para o poço, para onde saltou o cavaquismo.
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