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João de Sousa

Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Um “detonador” chamado Sócrates

João de Sousa
João de Sousa
Jornalista, Director do Jornal Tornado

De início seria legítimo pensar tratar-se de um fenómeno isolado, de uma idiossincrasia lusa igual a tantas outras. Mas, a pouco e pouco, o fenómeno alcandorou-se a tais píncaros de bizarria, assumiu contornos de tal modo viscerais, telúricos, que não podia deixar indiferentes os cidadãos que gostam de exercer as prerrogativas dessa particular condição como, por exemplo, pensar.

Refiro-me, claro, ao “efeito” Sócrates. A simples menção do nome faz saltar alguém, que passa da quietude a uma inflamada excitação em menos tempo que o Bentley precisa para ir de 0 a 100 quilómetros/hora. No meio de tantos “assaltos” ao bolso dos cidadãos não deixa de ser singular que um único indivíduo congregue sobre si tal ira e tamanho ódio.

Foi o que decorreu da reportagem realizada pelo experiente e reputado jornalista José Mateus, publicada há alguns dias neste Jornal, sob o título “Fomos Jantar ao “Restaurante de Luxo” do Sócrates em Paris“. Esta reportagem tinha dois propósitos: suprir uma lacuna por nós detectada em todos os relatos acerca da “luxuosa vida” de Sócrates em Paris – nenhum órgão de comunicação social apresentou provas de que a palavra “luxuosa” fosse aplicável, comprovando de forma inequívoca, através de recibos ou de tabelas de preços, a justeza da escolha do adjectivo -, e, ao mesmo tempo, questionar o rigor jornalístico das “narrativas” postas a circular, e que de tão repetidas se tornaram vox populi, como se de verdadeiras investigações jornalísticas se tratassem, acerca de temas escatológicos como é o caso de tudo o que se refere ao ex-Primeiro-Ministro.

jantarAqui D’El Rey que estávamos a branquear o cavalheiro, acusaram-nos alguns nas redes sociais. O Jornal Tornado define de forma inequívoca, no seu Estatuto Editorial, o ambicioso objectivo de tornar a nebulosa realidade mais transparente para os Leitores. Todavia branquear o que quer que seja está completamente fora dos propósitos que elegemos e nos norteiam.

Como é natural, não foi perguntado, individualmente, a cada jornalista e colunista do Jornal Tornado o que pensa acerca da inocência ou culpabilidade de A, B ou C. O mais provável é que, como na sociedade, haja posições diferentes e até contraditórias. O Jornal Tornado não tem nos seus objectivos ser juiz, júri, muito menos carrasco, de quem quer que seja. Para isso existem os tribunais.

Pessoalmente não tenho opinião formada sobre a culpa ou inocência de Sócrates a propósito dos factos que lhe são imputados mas dos quais não está sequer acusado. Já a inexistência de acusação é, em si mesma, indício não negligenciável da fragilidade dos elementos probatórios recolhidos ao longo de três anos pelo Ministério Público.

Socrates votou á hora de cavacoTodavia, há diversos factos que não podemos deixar de constatar. Desde logo que o Estado de Direito foi severa e reiteradamente atropelado pelas autoridades que conduzem a investigação – começando pela detenção mediática na “manga” do avião aquando da chegada à Portela, passando pela circunstância de o Juiz de Instrução – supostamente uma entidade independente da “acusação pública” e defensora dos Direitos Constitucionais do cidadão – agir, nos interrogatórios como nas diligências, como um “prolongamento” da investigação do Procurador, até à libertação a conta-gotas de “suspeitas” e “indícios” presentes no processo, em Segredo de Justiça, para certos jornalistas e jornais, por demais conhecidos, que chegaram ao absurdo de se constituírem partes no processo.

Quando a Justiça permite, para não dizer promove, a mediatização de processos, em função dos sujeitos, está ao mesmo tempo a promover a “politização” destes. Uma vez na praça pública os processos deixam de ser puramente judiciais para se tornarem em “processos políticos”.

Permitindo a deslocação do centro de decisão do Tribunal para a Opinião Pública é aos próprios Procurador e Juiz de Instrução que é imputável a responsabilidade pela “desjudicialização” do processo e correspondente passagem para a esfera política. Uma vez que os cidadãos não dispõem do conhecimento dos factos julgam em função dos indícios. Ora isto é o contrário do Estado de Direito. E, sobre isto, o Jornal Tornado tem uma posição clara. Somos pelo absoluto respeito dos Direitos, Liberdades e Garantias consignados na Constituição da República e na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

O mesmo se diga, de resto, no que à prática jornalística diz respeito. As “investigações” de cadeira, os juízos sumários, a não comprovação dos factos, escapam à Deontologia e às melhores práticas da nobre profissão de informar. Adjectivos há muitos!

A um Oceano de distância, o mesmo “filme”

luladasilvaInegável é que a “receita” fez escola e está neste preciso momento a ser aplicada no Brasil, com consequências políticas e sociais muito mais imprevisíveis, com o ex-Presidente Lula. Os ingredientes estão todos lá: uma personalidade politicamente forte e carismática que logrou “insinuar-se” nas grandes corporações e no capital financeiro; proveniente de fora dos “circuitos” considerados aceitáveis pelas “elites” da extrema-direita fortemente sustentada pela comunicação social dominante que controla e apoiada num “justicialismo” populista, para abater um adversário político através da destruição irreversível da imagem do seu carácter.

Também neste caso não sabemos da culpa ou inocência de Lula. Nem queremos saber. No Brasil como em Portugal essa missão cabe aos tribunais. Mas, lá como aqui, sabemos que o Estado de Direito está sob forte ameaça em consequência dos procedimentos das autoridades que deviam ser os seus principais defensores. Com os golpes militares na memória e a guerra civil como ameaça real é com enorme preocupação que assistimos a esta investida sem escrúpulo nem vergonha dos ultra da direita. E, a mão que embala o berço, não é dos Juízes que estamos a falar. Estes apenas se expõem, acredito, por crerem firmemente na justeza das suas causas. Mas também não é possível ignorar os excessos e abusos, lembrando que os fins não justificam os meios.

 

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