Com bombardeamentos diários desde 30 de Setembro contra posições do chamado “estado islâmico” (ei) e outras organizações de oposição ao regime de Damasco, a intervenção directa da Rússia na guerra da Síria opera uma viragem significativa no confronto, acentuando a internacionalização do conflito, um dos mais sangrentos do Médio Oriente.
Iniciada em 2011, a guerra civil na Síria alargou-se a partir do momento em que forças do ei passaram a controlar vastas regiões do Iraque e do norte da Síria, levando diferentes estados da região a intervir para tentar controlar a evolução dos acontecimentos.
Enquanto o Iraque reforçava a sua cooperação com o Irão, ambos xiitas, as monarquias sunitas do Golfo – em particular a Arábia Saudita e o Catar – e também a Turquia apostavam no apoio bélico e financeiro a diferentes grupos islâmicos de oposição ao regime de Bashar Al Assad.
Ao mesmo tempo, EUA, França, Inglaterra e dezenas de outros países formavam uma coligação que passou a bombardear as posições do ei, sem no entanto conseguir, em ano e meio, alterar a situação no terreno, a ponto de muitos se interrogarem sobre o verdadeiro grau de empenho colocado nessa operação.
É neste contexto de impasse, em que Damasco vinha perdendo terreno, ao mesmo tempo que o ei continuava implantado e actuante, que surge agora a intervenção da Rússia, alterando profundamente os dados do problema.
Com o apoio da aviação russa, o exército sírio desencadeou uma contra-ofensiva e tem vindo, nos últimos dias, a recuperar uma série de localidades num vasto arco em torno de Damasco.
Assim, quando tudo parecia encaminhar-se para uma derrota de Assad, há muito exigida pelos ocidentais, o apoio de Moscovo confere-lhe uma sobrevida e pode colocá-lo de novo como interveniente indispensável nas futuras negociações com vista a uma transição de regime.
Rússia marca pontos em vários tabuleiros
Por outro lado, com esta intervenção, Putin obtém ganhos em diferentes outros planos.
Primeiro, contraria a imagem de uma Rússia decadente e isolada, a braços com profunda crise económica motivada pela quebra do preço do petróleo, sua principal mercadoria de exportação, e com dificuldades suplementares devido às sanções económicas impostas pelo Ocidente.
Depois, prova dispor de forte capacidade militar e estratégica, expressa não só na eficácia dos seus bombardeiros, mas também na precisão com que, há dias, quatro dos seus navios de guerra estacionados no Cáspio atingiram com mísseis alvos do ei na Síria, a mais de mil e quinhentos quilómetros de distância – imagens que até agora só os EUA conseguiam produzir.
Com esta prova de força e poder de iniciativa, Moscovo não só preserva um seu aliado tradicional na região, onde a Rússia dispõe de acesso a um porto de mar (Tartus) e tem uma base (Latakia) que lhe asseguram mobilidade e projecção de força no Mediterrâneo, como adquire simpatia de outros países, designadamente o Irão e o Iraque, com os quais criou nas últimas semanas em Bagdad, juntamente com a Síria, uma central de informações na luta contra o ei.
The last but not the least, a Rússia reforça posições no grande jogo do Médio Oriente (onde só é respeitado quem tem força e se mostra consequente) assegurando desde já um lugar à mesa numa futura regulação dos conflitos na região.
Não é um jogo sem riscos. Para além da hostilidade das potências ocidentais e designadamente da NATO/OTAN, a que terá de fazer face em termos de opinião pública internacional expressa nos grandes media, mísseis podem sair fora de controlo, aviões podem ser derrubados, militares mortos… o que poderia criar oposição interna.
O secretário de Estado da Defesa dos Estados Unidos, Ashton Carter, alertou também, há dias, que “a Rússia pagará o preço” desta intervenção, prevendo retaliação de forças islâmicas contra os interesses de Moscovo.
Nada, aparentemente, que Putin não tenha levado em conta na avaliação que fez, tendo decidido que o ganho possível valia o risco. Para já, recolocou a Rússia no centro de um dos cenários mais importantes da política externa mundial. Não é coisa pouca, para um país acusado de ter rompido, na Ucrânia, com a legalidade internacional pós-guerra fria e merecendo por isso ser condenado ao ostracismo pela comunidade internacional.
Com a crise dos refugiados a ajudar e os crescentes protestos dos agricultores europeus, insatisfeitos com as barreiras levantadas por Moscovo, a própria UE já veio dizer que talvez tenha chegado a hora de melhorar as relações com a Rússia, ou seja, levantar as sanções impostas por pressão americana em resposta à (re)anexação da Crimeia.
Goste-se ou não, a verdade é que até agora Putin não só tem conseguido fazer frente às pressões como obter ganhos sucessivos com jogadas arriscadas, mas calculadas, para não cometer os mesmos erros que levaram ao fim da URSS. Como se diz na Rússia, quem não arrisca, não bebe champanhe.