Nuno F. Silva, natural de Parada de Todeia (Paredes), há 22 anos, completou o ensino secundário em Humanidades sem prosseguir para o superior, para poder tirar a carta de condução e adquirir independência. Procura a redefinição do seu rumo. Tem paralisia cerebral. Tem quatro livros de poesia publicados.
Destes, os três primeiros foram edições de autor. Percurso não inédito pelo qual passam muitos autores no seu nascimento e iniciação como poetas e artistas: do anonimato público. Até que, como confessa, houve um convite que “surgiu em Fevereiro deste ano, quando lancei o meu terceiro livro de poesia, Frágil. Quando o Paulo Afonso Ramos leu uma entrevista que fiz com o jornalista Roberto Bessa para o jornal Verdadeiro Olhar, contactou-me e propôs-me que o deixasse trabalhar sobre o meu próximo livro, no caso, o Lunescer.” Este é o quarto e mais recente livro, com a chancela Lua de Marfim. Primeiro, o quase anonimato, o percurso solitário, a voz no deserto; depois, o reconhecimento editorial e com isso o público.
Escrever foi algo que se impôs como “natural. Foi aos 15 anos de idade que acabei por descobrir que a escrita era uma parte essencial da minha vida. A vontade de criar aliada à vontade de dizer o que sentia na minha relação com aquilo que me rodeava”. O impulso provém a Nuno F. Silva de “uma necessidade básica do ser Humano – a de se expressar, o meio que eu encontrei para o fazer foi a escrita.
Há coisas que podem ser ditas apenas dentro de um contexto artístico – a arte é uma forma «desajustada» de viver.” O que diz, o que expressa a poesia de Nuno F. Silva? “A sensibilidade” — diz — “vai acima da razão”. A poesia serve-lhe de “catarse para o pensamento, uma forma mais lírica de olhar o mundo e os meus dilemas filosóficos e pessoais. É um misto de luz e escuridão. Um trilho que atravessa todas as estações e quase todos os estados de espírito.”
Como poeta, é leitor de poetas. Dentre aqueles com quem mais se identifica na arte cita os nomes de Daniel Faria, Herberto Helder, Alberto Caeiro, Frederico Garcia Lorca e Arthur Rimbaud.
Há um facto que ao nome de Nuno Silva tem sido associado: a condição física de paralisia cerebral
Quanto a isso, o poeta é claro: “Não exploro a minha sensibilidade por via desse prisma”. Pois embora “aquilo que criamos seja produto daquilo que somos, creio que a minha arte e a minha condição física são assuntos totalmente separados.” Tem sido apoiado, encorajado, o que o tem contribuído para a sua evolução como poeta e ser humano.
Nuno F. Silva não escreve segundo o chamado “novo acordo ortográfico de 1990”. Como essa é a posição editorial do Tornado, a pergunta não escapou: o que pensa sobre a matéria. Assumindo uma “birra” e uma recusa inicial, hoje assume tratar-se mais de um hábito de escrever de determinada forma, na ausência de uma posição declaradamente firme contra ou a favor.
Sem poemas não há poetas nem livros. Ficam aqui alguns, do livro Lunescer, que revelam um poeta que explora mundos e palavras, as associa em estado bruto, mas sempre numa procura de algo por descobrir e construir, para o ordenar. Uma poesia que se refugia em lugares escondidos, reflecte e rola sobre si mesma “corpo para dentro do corpo”, buscando por onde explodir. Pois o sonho (uma importante isotopia da sua arte) é a grande matriz destes versos. Um poeta lírico, na acepção corrente do termo, em que o sujeito poético se expressa como “eu”, mas sempre visando um interlocutor, eu “tu”, a quem comunica a sensibilidade que “vai acima da razão”.
O Senhor do Tempo
O tempo pode fluir depois de mim
sem que eu seja parte do seu fluxo.
Poderei interromper o curso temporal
com uma lâmina que me impeça
de sentir o relógio a badalar.
Um último grito nu
a carne rasgada como um poema mau.
A melancolia,
as flores para enganar o estado de espírito.
Os poemas trazidos do fundo,
das raízes da loucura, dos sentimentos funestos.
O relógio a mentir ao futuro,
dizendo-lhe que tudo há-de melhorar,
no entanto, é tudo como sempre
uma, duas, três vezes…
Não importa quantas manhãs eu me permita a acordar.
O Templário
E se o brilho dos teus olhos
não amanhecer com a aurora
não te preocupes!
Não me esquecerei das rosas brancas,
das palavras de sangue, de tanto serem sagradas.
Não me esquecerei de cultivar as memórias,
de polvilhar o teu nome num campo de magnólias.
Levarei os segredos no alforge,
imaginando a madrugada.
Todos os momentos que vivemos
vão comigo, ao lado da maçã canonizada.
Abrirei uma cruz vermelha em meu peito,
pela longa veia do amargo sentimento
com uma pequena lâmina
pelo que é sagrado amolada.
Partirei então, num sacro silêncio
na seguinte manhã de nevoeiro
em busca de uma Terra santa.
Irei, como um bom Templário,
pela paz de espírito, completar a lúgubre cruzada.
A Origem
Tudo nasceu da poça de sangue
escuro que exibia na sua garganta:
O Sol, o grito,
a floresta e o amor pecaminoso,
e a loucura dos deuses grisalhos,
deitados na nudez dos berços em oiro talhados.
Nos meus olhos astrais
estão escritos pergaminhos ancestrais
sobre o sangue das estrelas polares.
O cabelo do divino galáctico desmaia no céu,
a noite arde e eu não me sinto sozinho.
A cor da chama a velejar pelo infinito.
Os meteoros? Os meteoros são pedaços da velhice
encantada de Deus.
O silêncio é a propriedade das coisas,
do universo visto de dentro de tudo.
As explosões astrais sem ruído,
e o pó das estrelas esvoaçante,
no infinito espaço celestial.
Num mundo paralelo, as estrelas de verão
acampam em peitos com cores de deserto.
E os lobos uivam pelo sangue fresco,
que os Homens trazem nos lábios.
O sangue dos lobos cinzentos
que bafejam as estrelas,
E a resposta para a questão platónica
e ancestral de todas as coisas:
O SONHO!
Elegia
Coitado!
Dizem que pariu uma elegia
debaixo do lodo da lâmpada,
na imensidão claustrofóbica do quarto.
A sombra do poema, examinada a raio X
confirmava-o:
Era um nervo soturno da cabeça aos pés.
Como quem se veste sempre de negro,
a fechar perpetuamente o corpo à luz.
Novembro
Fumegam as lâmpadas queimadas
pelo frio de mil Novembros.
Esmorece como uma centelha
a luz das paisagens em pastel.
Recolhe-se o corpo para dentro do corpo.
Como as copas das árvores,
que são segredos à noite.
Amanhã virá certamente outra aurora.
Pela janela,
com a mesma vagarosa urgência de sempre
Tingindo as janelas com ouro branco.