A direita política (Coligação e Cavaco) está aterrorizada e tem razões para isso. O que se está, neste momento, a jogar não é a formação de um Governo, nem o saber se esse Governo será de esquerda ou de direita. Isso é conjuntural e secundário. O que de realmente importante se está, nestes dias, a jogar em Portugal é a alteração e a mudança do paradigma político que tem sido dominante em Portugal desde o final do ano fundacional de 1975.
Esse paradigma, nascido das especificidades do “PREC” (como o saudoso João Isidro o baptizou, transformando em sigla uma frase muito frequente nos comunicados de certa esquerda militar), acabou por ser altamente favorável à direita política. O primeiro a perceber as vantagens desse paradigma, conjugado com o método de Hondt, foi Francisco Sá Carneiro que rapidamente criou a coligação de direita a que chamou AD.
Com a fuga, a partir de 1974, da direita económica e política para o Brasil, Londres, Puerto Banus e outros sítios simpáticos (o próprio Sá Carneiro se ausentou frequentemente do País), a tentativa de absoluta hegemonia do PCP e seus “compagnons de route” da esquerda radical apenas encontrou no terreno a resistência política do PS de Mário Soares. Resistência que se afirma e desenvolve impetuosa na sequência desse momento histórico que foi a imensa “manifestação da Alameda” e culminará na vitória da esquerda militar moderada do “Grupo dos Nove”, no “25 de Novembro”.
A segunda metade do ano de 1975 é dominado pela resistência e contestação ao “PREC”, dirigida politicamente pelo PS de Mário Soares e militarmente pelo “Grupo dos Nove” (Vasco Lourenço, Ramalho Eanes, Melo Antunes, Sousa e Castro…). No fim de Novembro desse ano, os “Nove” e o PS de Soares tinham derrotado as pretensões de um PCP (a funcionar, como nenhum outro PC da Europa Ocidental, totalmente num quadro de “guerra fria”…), gerando uma fractura radical e muito emocional no seio da esquerda portuguesa e criando, de facto, duas esquerdas (a socialista democrática e a de inspiração leninista) que se recusavam a encarar sequer a hipótese de ter uma conversa normal sobre o estado do tempo.
Durante estas décadas, o sistema político-eleitoral português tem sido constituído por três componentes: uma direita política com dois partidos sempre prontos a coligar-se e duas esquerdas que se recusavam até a conversar. A cereja no topo do bolo das vantagens que este paradigma dá à direita é o método de Hondt que, pela sua matriz de cálculo, sempre favoreceu a direita coligada, fornecendo-lhe um adicional de deputados que lhe permite ultrapassar facilmente as limitações que lhe poderia criar a maioria sociológica de esquerda de um país em que há muito domina a relação do salariato. A esquerda (melhor, as duas esquerdas), devido à pulverização de votos (que o método de Hondt castiga) perdiam sempre deputados… Deste ponto de análise, o aparecimento do Bloco de Esquerda veio pulverizar ainda mais os votos.
É um paradigma que interessa à direita manter
É óbvio, portanto, que este é o paradigma que interessa à direita manter e conservar, mesmo que para isso tenha de diabolizar os partidos à esquerda do PS e decretá-los “inaceitáveis” pelo regime, como há dias Cavaco fez num discurso que ficará para a história como uma das maiores barbaridades que em Democracia se podem dizer. À direita, portanto, interessa conservar mas à esquerda interessa conversar… Com as mesmas letras se escrevem realidades diferentes.
O diálogo que, sem anúncio prévio mas gerado pela singular conjuntura saída das “legislativas”, se estabeleceu, a partir deste 5 de Outubro, entre os três partidos das duas esquerdas e as conversas que se vão seguir aterrorizam uma direita habituada a viver da renda de situação que este paradigma lhe fornecia e que está a ver o chão a fugir-lhe debaixo dos pés.
É, então, tempo para fazer já um governo de esquerda, um governo socialista suportado por um apoio parlamentar dos outros dois partidos da esquerda? Penso que é demasiado cedo. Agora, é tempo de deixar a coligação mostrar do que é ou não é capaz, de deixar Cavaco mostrar as suas habilidades de padrinho de uma direita impotente para exercer a sua arrogância e berrar pela Tina (There is no alternative) e de, à esquerda, trabalhar para estabelecer uma realista base programática de governo que, não coincidindo com o programa específico de qualquer um dos três partidos, permita que se entendam sobre o que há a fazer para logo que fique clara, ao eleitorado, a incapacidade, a incompetência e a impotência desta direita poderem solidariamente assumir o seu destino.
Tempo de fazer um governo à esquerda
Assumir o destino de salvar o País da morte que o espreita, restabelecer a dignidade dos Portugueses e, depois de todas as escandaleiras e negociatas (desculpe-se a linguagem quase brejeira mas é a mais consoante com a situação criada…) que dominaram os últimos anos, esclarecer responsabilidades e autores (sem intuitos criminais mas como aconteceu na África do Sul pós-apartheid que enfrentou o seu passado com o trabalho de esclarecimento da Comissão de Verdade e Reconciliação…) para que se liquidem de vez conluios ilegítimos e os concubinatos “política/negócios” e outras relações “incestuosas” e corruptas. Para que os agentes de tais negociatas corruptas possam ser identificados e definitivamente afastados dos centros de decisão e para que, a partir de tal limpeza, se possa restabelecer, finalmente, no País uma vida política em bases sadias, com transparência nos financiamentos das campanhas eleitorais e na origem dos seus fundos…
Este é tempo de mudança de paradigma e de deixar esta direita fazer o espectáculo da sua impotência e do seu descalabro. António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa têm um (inesperado) encontro com o destino… Se o falham ou não, se estão ou não à altura do desafio, só deles depende. O resto são as cantigas do costume.