“[…] toda a educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradar-lhes, ser-lhes útil, fazer-se amar e honrar por eles, educá-los quando são jovens, cuidar deles quando são grandes, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida agradável e doce – eis os deveres das mulheres de todos os tempos e aquilo que se lhes deve ensinar desde a infância.”
Rousseau, Émile, Ouvre complète, Tome IV, 703
Em todas essas sociedades o paradigma predominante foi um paradigma dominador em que metade da humanidade subjugou a outra metade. E em que essa metade (com algumas excepções) se deixou “dizer” pela outra!
Esta situação conduziu a que a desigualdade histórica e cultural, que foi construída, fosse (ainda é) apresentada como sendo natural. Na verdade, a melhor forma de dominar os outros é convencê-los que são inferiores e que essa circunstância faz parte da ordem natural do mundo!
Nessa perspectiva, a mulher tinha um lugar (a casa) e uma função (a maternidade).
Constituiu-se, assim, uma representação antropológica baseada no pretenso “universal neutro” – Homem-, o “falso neutro” como em 1985 bem o caracterizou Maria Isabel Barreno. A natureza humana foi apresentada como se as mulheres não existissem ou então como se tivessem uma mera existência de dependência e de carência. Reduzidas à invisibilidade e à sombra, na religião, na ciência, na filosofia, na política. Quando “trazidas à luz” era apenas por aquilo que a moral vigente considerava desprestigiante.
Deste modo, as representações sociais da mulher, operacionalizadas pelos homens serviram (e servem) para validar uma ordem social estabelecida, legitimando a desigualdade. Têm expressão nos vários discursos, desde os mais elaborados aos do quotidiano e aí, nesses diferentes contextos, a conotação é sempre negativa. Por isso, entendo que a linguagem não é uma questão secundária quando se trata de discutirmos as questões da desigualdade.
É uma questão essencial em todas as formas de discriminação: quando nos referimos a indivíduos pertencentes a grupos minoritários, poucas vezes os tratamos pelo nome próprio, usando quase sempre a do grupo a que pertencem, quando numa turma há três rapazes e vinte raparigas, a designação é “alunos”.
A desigualdade de género, como todas as desigualdades, tem uma linguagem própria, “diz-se” de determinados modos. Para a combater, é preciso também, desconstruir essa linguagem.
Na verdade, a linguagem é sempre expressão de uma visão do mundo que tem, simultaneamente, o enorme poder de influenciar o pensamento e a realidade. De modo que, se estamos interessados em contribuir para uma sociedade mais justa, é necessário questionar toda a estrutura do discurso e os estereótipos que este reproduz. E, em vez de ridicularizar, seria importante parar e pensar.
Não foi por acaso que a Assembleia da República em 8 de Março de 2013 elaborou uma recomendação às entidades públicas e privadas para que nos seus documentos se substituísse a expressão “Direitos do Homem” por “Direitos Humanos”.
Em meu entender, não se trata de uma mera questão de “politicamente correcto” mas de um passo exemplar do caminho a seguir.
Uma sociedade em que deixe de existir domínio de uns seres sobre outros, que seja centrada numa cultura de relação entre seres humanos diferentes mas de igual dignidade constrói-se, de forma equilibrada, gradual e evitando o ridículo.
Mas não pode esquecer que é preciso “dar voz” a quem está na sombra e uma voz que seja, também ela, expressão de equidade.
[…] Source: Na sombra – Jornal Tornado […]