“O anterior Governo da direita aplicou um programa de autêntica ‘contra-reforma’ no mundo do trabalho, visando suprimir direitos do trabalho, enfraquecer o sindicalismo e embaratecer os custos salariais.”
Quem o diz é o investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Elísio Estanque. O professor da Faculdade de Economia da UC adianta que “a cultura do medo, que tinha sido exorcizada no período revolucionário, regressou agora em força”.
Que “portas Abril abriu”, que vários já tentaram fechar?
Abril abriu as portas da democracia e da descolonização, estas já cumpridas do ponto de vista formal, mas, além disso, abriu a esperança de um país desenvolvido, mais justo, igualitário e inclusivo.
O vértice do desenvolvimento (ao qual se deve associar a emancipação social) é o último dos três DDD (Descolonizar, Democratizar e Desenvolver) que está por cumprir, muito embora tenhamos alcançado avanços significativos. E após esses avanços também já houve alguns recuos…
“No tempo da outra senhora é que era bom!”. Quando houve esta frase fica em silêncio ou reage?
Depende do contexto, mas em geral fico indignado.
“Portugal seguiu o caminho da Europa, mas de uma Europa muito desigual e que não soube dar continuidade a algumas boas lideranças”
E replica?
Se as circunstâncias forem propícias tento explicar, mostrando o quanto “a outra senhora” foi de facto responsável pelo atraso estrutural do nosso país.
Basta olhar para os indicadores sociais no campo da educação, do sistema de saúde ou dos direitos sociais em geral, mas também no que respeita às infraestruturas, a ciência e a tecnologia, por exemplo.
Que caminho seguiu Portugal em 42 anos?
Portugal seguiu o caminho da Europa, mas de uma Europa muito desigual e que não soube dar continuidade a algumas boas lideranças do passado e que, por isso, está hoje “aprisionada” a um modelo muito burocratizado e tecnocrático, incapaz de dar o salto para uma cidadania transnacional e para um sistema económico mais inclusivo, solidário e convergente.
O que se andou em quatro décadas?
Houve avanços democráticos importantes no nosso país, mas não se cuidou ou pelo menos não se cuidou o suficiente, da cultura democrática e da cidadania num sentido participativo e fundado na justiça social e na ética republicana.
Os avanços materiais e educacionais que conquistámos não foram acompanhados por idênticas doses de iniciativa, de inovação empresarial e empreendedorismo solidário que nos conduzisse a um modelo mais justo, mas também mais exigente na responsabilização das pessoas e das instituições.
O paroquialismo, o compadrio e os laços tutelares inscritos na nossa tradição católica não desapareceram, apenas foram transferidos do mundo rural para os ambientes urbanos e consumistas da vida “moderna”.
“O paroquialismo, o compadrio e os laços tutelares inscritos na nossa tradição católica não desapareceram, apenas foram transferidos do mundo rural para os ambientes urbanos e consumistas da vida ‘moderna’”
“A paz, o pão, habitação, saúde, educação, ”… Vivemos hoje em liberdade? O que falta para o País ser livre?
A liberdade constrói-se na acção, com colectivismo e sentido solidário e também com alguma dose de sonho e de esperança à mistura. Esses ideais evocados nessa canção do Sérgio Godinho foram vividos num outro tempo. Num tempo onde todos os idealismos e utopias eram possíveis, mas também um tempo sem amarras, onde a liberdade ganhava uma expressão concreta no terreno das realizações.
A sensação de que a justiça se cumpria, ali e “agora” – para lá dos quadros legais –, quando o patrão ganancioso abandonava a fábrica e os operários arregaçavam as mangas e mantinham a produção numa base cooperativa e solidária; quando um apartamento abandonado há décadas no centro da cidade era ocupado – para lá do sentido de propriedade privada – para acolher uma família retirada do bairro de barracas e da sua anterior condição degradada e miserável.
Mas o que não chegou a ser? O que faz falta ao homem para ser livre?
Para serem mais livres os homens e as mulheres de hoje terão de ser mais solidários e menos consumistas. Porque só assim poderão (re)conquistar a dignidade e os direitos que entretanto já lhes foram suprimidos, designadamente na esfera do emprego.
Então “ o que faz falta para animar a malta”?
Outra vez, inspirando-nos naquela canção do Sérgio, atrás referida, mas acrescentando-lhes novas bandeiras de luta social. Construir um mundo melhor é possível exigindo mais transparência, honestidade e competência aos líderes políticos do futuro (que terão de sair do seio da juventude mais irreverente e competente…).
“Poder despótico e assédio moral” O que mudou cinco anos pós-troika no mercado laboral português?
Mudaram as ilusões em que muitos de nós vivemos durante algum tempo, enganados e inebriados com a crença de que o progresso e o bem-estar estavam assegurados. Os últimos anos obrigaram-nos a cair na realidade. Mas o pior é que junto com a troika e com a austeridade instalou-se o medo em muitas esferas da nossa vida.
Que medo é esse?
A insegurança, a descrença e a resignação face aos poderosos e às instituições democráticas (hoje, em boa medida corridas e instrumentalizadas). Em vez do princípio do mérito e da primazia das qualificações abateu-se sobre os novos contingentes da força de trabalho (jovem e qualificada) o rolo compressor da lógica do mercado, do poder despótico e do assédio moral em diversos sectores do emprego. Os mais jovens perdem o sentido do que é o Estado de direito e o trabalho digno e com direitos.
“’Mais vale um emprego precário do que o desemprego’ tornou-se um lema propagado pelo patronado mais conservador”
Que emprego temos hoje em Portugal? Precariedade. Falsos Recibos Verdes. Flexibilidade nos despedimentos. Baixos salários. Aumento da carga horária… É isto?
É tudo isso a que assistimos nos últimos cinco anos que representa o maior retrocesso desde a Revolução do 25 de Abril. Flexibilidade e empreendedorismo tornaram-se slogans usados pelo poder económico para impor o princípio da concorrência sem regras e promover o trabalho barato e semi-escravo que começa a florescer em diversos cantos do mundo.
Nos últimos dez a quinze anos a esmagadora maioria do emprego criado é precário, mal pago e controlado por chefias e patrões na maior parte dos casos de cariz despótico.
O panorama é péssimo e por isso os nossos melhores quadros emigram às centenas de milhares. Em suma, estamos perante um ciclo vicioso que, no fundo, traduz uma transferência de recursos e de riqueza de um país pobre e periférico (Portugal) para os países mais desenvolvidos da Europa (Inglaterra, Suíça, Alemanha, etc).
Nos últimos anos houve então um retrocesso nas políticas laborais?
Como já referi, nos últimos dez anos ou mais – desde a entrada no novo milénio – as relações laborais e o mundo do trabalho entraram num processo acelerado de mudança, arrastada pelo triunfo do paradigma económico neoliberal e pela globalização dos mercados desde os anos oitenta do século passado. Esse processo começou com a fragmentação do tecido empresarial, o “outsourcing”, a subcontratação e a chamada “lean production” (produção enxuta).
Passámos a ter trabalho com mais ou menos direitos salvaguardados? Com mais ou menos deveres?
O inicialmente designado “trabalho atípico”, foi-se entretanto generalizando (no caso português a questão dos “falsos recibos verdes” foi uma primeira modalidade) e multiplicando quer nos tipos de vínculos contratuais, quer na mobilidade e facilitação do despedimento, no trabalho a tempo parcial, no trabalho temporário (incluindo com as empresas especializadas) num quadro de mudança que vem dando lugar a uma autêntica metamorfose das formas de prestação de serviços em que o trabalhador e os seus direitos se foram degradando cada vez mais.
E esse quadro de precariedade agravou-se quando?
Sobretudo nos últimos cinco anos com o programa de resgate e a austeridade violenta, a precariedade tornou-se um traço comum nos diversos sectores do trabalho assalariado.
A pretexto do equilíbrio das contas, do rigor orçamental e da inevitabilidade dos cortes na despesa, o anterior Governo da direita cavalgou a narrativa da urgência das “reformas laborais” e do estímulo ao “empreendedorismo”, alinhado pela política ditada por Bruxelas e pela troika (que se exprimiu na célebre fórmula do “bom aluno”), aplicou um programa de autêntica “contra-reforma” no mundo do trabalho, visando suprimir direitos do trabalho, enfraquecer o sindicalismo e embaratecer os custos salariais.
“Nos últimos dez a quinze anos a esmagadora maioria do emprego criado é precário, mal pago e controlado por chefias e patrões na maior parte dos casos de cariz despótico”
“A cultura do medo regressou em força” Os sindicatos estão hoje descredibilizados? Como explica?
São três aspectos intimamente relacionados: a descredibilização dos sindicatos é resultado, antes de mais, do triunfo desse paradigma neoliberal agravado pela chegada da crise e o disparo dos números do desemprego. “Mais vale um emprego precário do que o desemprego” tornou-se um lema propagado pelo patronado mais conservador e que, aos poucos, se foi “naturalizando” junto dos sectores mais jovens da força de trabalho.
Por outro lado, o sindicalismo, habituado a defender apenas os assalariados com emprego estável, foi-se tornando mais dependente do funcionalismo público e das profissões de “classe média”, deixando-se guindar por uma lógica corporativista e incapaz de se adaptar à nova realidade laboral. Além disso, importa também reconhecer que em alguns períodos, inclusive no início da recente crise (2011 – 2012) as greves e manifestações foram-se banalizando e perderam credibilidade junto dos trabalhadores mais precarizados e das camadas jovens.
Os dirigentes sindicais estão envelhecidos (sobretudo nas ideias e nas modalidades de acção que propõem) e não têm conseguido aliciar os segmentos mais débeis e instáveis dos trabalhadores (que são quem mais precisa dos sindicatos).
Os activistas sindicais e os trabalhadores sindicalizados continuam a ser vistos com preconceito? Ainda há a cultura do medo no mundo laboral? O respeitinho ao chefe?
Acresce que, com empresários altamente conservadores (e eles próprios por vezes também ameaçados de precariedade), com baixos níveis educacionais e um tecido produtivo composto sobretudo por micro e pequenas empresas, criou-se uma realidade particularmente propícia à cultura paternalista e autoritária, onde a presença do sindicalismo é diabolizada e os activistas perseguidos e ameaçados diariamente.
Se a tudo isto somarmos os ancestrais traços de paroquialismo e dependência servil, cujas raízes remontam à era medieval mas que foram estrategicamente instrumentalizados pelo Estado Novo e o salazarismo, percebe-se melhor as razões desta cultura do medo, que tinha sido exorcizada no período revolucionário, mas que agora regressou em força.
“As fracturas sociais foram fomentadas por um dirigismo político irresponsável desde há cerca de quinze anos”
“O Estado social entrou em retrocesso” Portugal continua a ser dos países mais pobres e desiguais da OCDE. Que avaliação faz dos anteriores para tentar inverter este panorama?
O nosso país tem tido maus governantes desde há muito. Mesmo após a instauração da democracia a nossa classe dirigente nunca conseguiu definir um projecto mobilizador e modernizador da nossa economia.
As desigualdades vêem igualmente de trás, mas era suposto que a democracia as combatesse com maior eficácia. Houve alguns períodos, nomeadamente na segunda metade dos anos noventa e já na primeira década deste século, em que as desigualdades foram pelo menos contidas.
Depois, com a crise económica e todo este panorama que acabei de mencionar no campo laboral, os sectores que tinham alcançado melhorias significativas (no essencial a classe média assalariada: professores, funcionários públicos, empregados do sector dos serviços e a mão-de-obra mais qualificada) viram-se de repente bloqueados pelas medidas de austeridade.
O Estado social entrou em retrocesso e, apesar do RSI, da protecção dos mais pobres e das actividades das instituições assistencialistas, as desigualdades acentuaram-se de novo e um grande contingente da referida classe média foi empurrado para uma condição de vulnerabilidade, endividamento e pobreza.
Mas reconhece ao anterior Governo de coligação responsabilidades nos índices de pobreza do País?
O Governo PSD/CDS foi o grande agente do programa de austeridade; programa que, apesar do “foguetório” da direita, de facto não chegou ao fim e o país continua endividado e dependente dos ditames de uma Europa, ela própria cada vez mais à deriva.
Para terminar, peço-lhe uma pequena análise ao último relatório da APAV, que divulga números dramáticos no aumento da violência doméstica em Portugal. É resultado do clima de crispação que se instalou no País?
É sem dúvida um tema preocupante pelas proporções que tem assumido. A violência e a depressão constituem uma calamidade social que atinge sobretudo os países mediterrânicos e da periferia europeia.
Cá fomentaram-se fracturas sociais entre públicos e privados, empregados e desempregados, velhos e novos…
As fracturas sociais que refere foram fomentadas por um dirigismo político irresponsável desde há cerca de quinze anos. O anterior Governo da aliança de direita explorou esse discurso mas a origem já vem dos tempos do Governo Sócrates. A ideia de um nivelamento por baixo, de jogar os trabalhadores do sector privado contra os funcionários públicos ou o apelo ao conflito de gerações a propósito da sustentabilidade da Segurança Social obedecem a tácticas políticas perigosas e demagógicas.
Seja como for, é um facto que a crispação e o ressentimento ressurgiram em força em Portugal e tocam hoje amplas camadas sociais, em especial os sectores mais vulneráveis, como os jovens e os idosos.
O desemprego de longa duração e as carências económicas daí derivadas recolocaram relações familiares de gerações distintas em interdependência – uma interdependência forçada –, confrontadas com privações que chocam com anteriores hábitos de consumo, numa sociedade marcada pelo consumismo.
E são esses aspectos que estão por vezes na base de conflitos domésticos, de situações de violência e outras patologias sociais e pessoais graves.