Assim, a doença perturba a capacidade de formular juízos e desvia o homem do bem. Logo, o enfermo não se encontraria numa situação de debilidade física, mas também moral, incapaz de praticar as acções correctas ou virtuosas.Recorrendo à etimologia da palavra enfermo, o ilustre professor portuense Pinto da Costa, eminente especialista no domínio da medicina legal, refere que o enfermo (in-firmus) é o indivíduo sem firmeza física ou biológica e moral.
Ora, seria esta fragilidade do doente que justificaria, segundo alguns autores que fosse tratado como uma pessoa debilitada, como um ser incapaz de assumir a sua condição de forma plena. Daí a justificação do paternalismo médico que, longe de ser uma aberração moral, seria a única maneira natural de actuar com os doentes, pois estes encontram-se amputados no exercício pleno das suas faculdades.
A diminuição da autonomia e da consciência do doente, quando não mesmo a perda completa das faculdades, leva a que seja o médico, quem se tem que encarregar do doente. Essa é uma das situações que nos conduz ao paternalismo médico. Mas não é a única razão que está por detrás da sua defesa. Com efeito, o paternalismo médico acontece como resultado de uma relação médico-doente que se inicia mal o doente dá entrada no hospital.
A entrada do doente no hospital é acompanhada de um conjunto de formalidades burocráticas, por vezes verdadeiramente labirínticas, quase sempre exasperantes para aquele que se encontra doente e seus familiares.
O doente que está a sofrer e tem, muitas vezes, de se confrontar com a indiferença, o excesso de zelo e a frieza dos funcionários, que se deliciam em invocar e fazer cumprir todos os regulamentos, directrizes e normas de funcionamento. Este processo moroso é um ritual, um verdadeiro ritual de passagem e cuja liturgia cumpre um papel simbólico importante: o mundo do hospital representa um espaço distinto do mundo de lá de fora e a pessoa doente tem de ser investida (e até despida e vestida com indumentárias fornecidas pela instituição) nesta sua nova identidade: “A entrada no hospital envolve um rito de passagem em que a pessoa é transformada de cidadão livre em doente dependente”[1].
Despojado dos seus haveres pessoais, é-lhe entregue uma nova indumentária que o uniformiza perante todos os doentes e o separa dos outros que o visitam vindos do longínquo mundo exterior; doravante, ele é reconhecido através dum processo que resume o seu passado a uma história clínica – a sua história passa a ser a história das suas doenças e dos seus episódios clínicos.
Com este homem “novo” inaugura-se um novo tempo e um novo espaço, com regras e hábitos próprios. Nesta sua nova condição, o cidadão abdica dos seus direitos e entrega-se nas mãos dos que vão cuidar dele.
A sua vontade deixa muitas vezes de ser vista como tal, para passar a ser considerada, nas suas manifestações, como caprichos duma pessoa mimada, de alguém que não pode ser completamente levado a sério.
O doente terá de entregar-se às mãos do especialista, daquele que sabe o que o doente quer. Porque o doente deixou de querer, a sua vontade está obnubilada pela doença. O doente não vê bem, nem sabe muito bem o que se passa. A sua autonomia está enfraquecida, quando não se apagou completamente.
Não pode, por isso, ser levado a sério.O ritual de passagem, o formalismo da sua inscrição e admissão como doente, legitimam esta sua nova disposição, sancionam um contrato oculto onde o cidadão acaba de vender a sua alma, disponibilizando o seu corpo.
[1] WALL, Patrick, Dor – a ciência do sofrimento, Porto, Âmbar, 2002,WALL, 113
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