A propósito da passagem pelo IndieLisboa de Gaspar Noé, para apresentar Love, um filme com sexo explícito filmado em 3D, exibido na secção A Boca do Inferno, o francês nascido na Argentina concedeu-nos uma entrevista saborosa antes de partir para a Coreia. Sim, uma conversa explícita sobre sexo, o 3D e as suas influências.
Mesmo com a aura de filme experimental, Love não deixará de ficar como marco do cinema erótico. E, porque não, compará-lo a O Império dos Sentidos? É o que fazemos no final desta primeira parte da entrevista, onde mal começámos a falar do 3D e das suas influências para este filme, mas onde já se abordam os limites ou a ultrapassagem dos mesmos.
A explicação do efeito tridimensional da ejaculação para o ecrã, tal como muitas outras perguntas ficam para a segunda parte. De referir que Love tem estreia marcada para o dia 9 de Junho, pela Midas Filmes, em exclusivo em 3D, em Lisboa e no Porto, no UCI El Corte Inglés e no UCI Arrábida e em várias salas de todo o país.
Jornal Tornado – Encontrámo-nos pela primeira vez em Cannes, para a entrevista do filme Irreversível, um momento bastante intenso. Mas lembro-me de já nessa altura falou de algo semelhante a este projecto, possivelmente envolvendo Monica (Bellucci) e Vincent (Cassel). Está lembrado? Foi essa a origem de Love?
Gaspar Noé – Não, eu concebi este projecto antes mesmo de Irreversível. É que, depois de Seul Contre Tous (a sua primeira longa, de 1998) quis fazer Into The Void. Só que esse era um projecto muito dispendioso e não tinha ganho muito dinheiro com o anterior. Por isso, pensei em algo low budget que pudesse filmar em Paris de forma rápida. Escrevi o primeiro tratamento de Love – na altura chamava-se Danger – e mostrei-o ao Vincent e à Monica.
Antes de lerem as cinco páginas do tratamento disseram-me que sim, mas quando o leram disseram que não, mas que, ainda assim, estariam disponíveis para outra coisa. Foi nessa altura que cheguei à ideia de Irreversível. O problema é que tinha de preparar o filme em cinco semanas e não tinha guião. Quando começámos a filmar Irreversível tinha apenas três páginas…
JT – É interessante referir Enter The Void, porque me parece que entre estes filmes todos existe algo orgânico que os une…
GN – Sim, estes três projectos foram concebidos ao mesmo tempo.
JT – Como uma espécie de trilogia?
GN – Muitos cineastas concebem três projectos de uma só vez, talvez a pensar nas dificuldades de financiamento para todos os filmes. É como uma espécie de segurança, caso um deles não possa avançar.
No entanto, é interessante porque em todos os filmes, a personagem masculina é semelhante – o Vincente Cassel, em Irreversível, o Nathaniel Brown, em Enter the Void – Viagem Alucinante, e Karl Glusman, em Love – é sempre um tipo alto e bem-parecido, que só quer tomar drogas e fazer amor com a sua miúda. Pode não ser muito inteligente, mas é um tipo cool que vive o momento. Eu quis mesmo que fossem parecidos fisicamente.
JT – Será de certa forma essa uma aproximação biográfica de Gaspar Noé?
GN – É algo mais natural, porque eu mostro a minha identidade nos meus filmes, mas no caso destas personagens eles são mais comuns. Por isso quando me perguntam se este é um filme sobre mim próprio, eu digo que sim, em parte. Digamos que é mais a história de um irmão mais novo, algo que eu posso aprovar ou não, mas que reconheço me ser próxima.
JT – Poderemos dizer que o ponto de partida para este projecto foi filmar um casal a fazer amor da realidade?
GN – Pelo menos, o que eu queria era ver no ecrã imagens que me parecessem reais do que é fazer amor na vida real. Queria imagens carnais que cheirassem a verdade, queria que o filme cheirasse a sexo na vida real. Normalmente, quando vemos sexo no ecrã normalmente não é bem interpretado, ou quando é parece algo distante.
Não vemos aqui um estilo de género, mesmo de filmes eróticos do passado com emoções prolongadas. Normalmente essas cenas são breves. Por exemplo, nunca vemos um filme em que uma mulher faz amor durante a sua menstruação. Há muitas coisas que acontecem na vida real, mas que estão totalmente ausentes do cinema erótico clássico ou cinema porno clássico ou moderno.
JT – Concebeu algum tipo de limites a este projecto, limites que se impusesse? Ou deixaria ao critério dos actores?
GN – Talvez com a excepção de uma cena que acharam que seria um pouco mais excessiva, como fazer sexo com outro rapaz, embora depois tenha evoluído para um travesti. De resto, tudo o que vemos no ecrã é algo que eu já vi ou que amigos meus experienciaram. Quis fazer algo que fosse absolutamente normal.
JT – De qualquer forma, a cena do travesti no filme parece-me ser a mais ousada…
GN – É aí que eles percebem que ultrapassaram os seus limites. Para além do que eram as suas intenções iniciais. É como algumas pessoas dizem: ‘aquilo que não mata o casal deixa-o mais forte’. Mas há experiências em que se acaba por perder a intimidade.
JT – Penso também que se percebe que o actor estaria a atingir os seus limites enquanto actor…
GN – Ambos os actores não são nada exibicionistas ou adictos sexuais. São bastante normais. Acho que ambos embarcaram nesta experiência sabendo ao que iam e talvez até exorcizar algumas feridas do passado. De resto sabiam que iríamos fazer um filme sobre a vida real.
Nesse sento foram muito bravos, pois sabiam que independentemente do resultado final estas imagens acabariam por aparecer na net. Mas ajudou o facto de ambos terem famílias inteligentes, pois iriam expor-se. De resto, o que eu queria era encontrar pessoas carismáticas, mas também inteligentes.
JT – Isso leva-me a perguntar-lhe: como decorreu o casting? Foi difícil encontrar este casal?
GN – Inicialmente, queria encontrar um casal, pois seria mais fácil, ou um ex-casal, mas acabei por não conseguir ou conseguir que fosse credível. Como sou muito instintivo, não acredito muito em fazer através de um director de casting, por isso fui mais a bares e a festas perguntando a amigos se conheciam alguém com esse perfil. Conheci alguns via Skype e percebendo se funcionariam bem no filme ou não.
A verdade é que nunca tinha visto o Karl nu antes do primeiro dia de rodagem. Na primeira cena de nu, a rapariga disse-me que ele estaria bem no filme. Apenas lhe perguntei se tinha pelos púbicos, não ensaiamos nada. O único ensaio foi ele a apresentar-se às raparigas no filme e perceber se a comunicação funcionava.
JT – Nesse sentido, o sexo era improvisado?
GN – Sim, foi tudo improvisado. Mas não a história, pois tinha seis páginas escritas, mas nos diálogos durante essas cenas ou a posição da câmara foi tudo recriado no set e com um mínimo de pessoas. Embora com a noção de que queríamos algo que aparecesse muito sensual no ecrã.
JT – Como decorreu a rodagem, de forma cronológica iniciando com aquela longa cena inicial de masturbação?
GN – Por sinal, essa cena não deveria estar no início. Aconteceria mais para o meio do filme e abrandaria o seu ritmo. Ao coloca-la no início durante a montagem a ideia era poder pensar que era um sonho que ele estava a ter.
Era uma cena que não estava no guião e que filmámos no final. Todas as outras cenas de sexo foram filmadas durante a primeira semana. Isto tudo com uma equipa de 12 pessoas, mas durante essas cenas apenas 3 ou quatro pessoas.
O que queria sobretudo era apanhar um close–up dos rostos quando se estavam a beijar. Quando vi A Vida de Adele achei que os beijos e abraços eram mais sexy que as cenas de sexo. Por vezes, essas cenas são mais sexy do que mostrar genitais.
JT – Por isso acho que a palavra Love é mais ajustada a este filme do que, por exemplo, Sex…
GN – Quando temos cenas de sexo na vida real, podemos estar a apreciar a cara, as orelhas ou o pescoço da pessoa com quem estamos a fazer sexo, e não estamos a olhar para baixo.
JT – Pois, é a principal diferença entre o porno…
O mais sexo que vemos é mesmo a boca da outra pessoa.
JT – Que tipo de inspiração teve para este filme. Reparei que no final do filme tinha agradecimentos a Nicolas Winding Refn, a Scorsese, ao Wakamatsu…
GN – Sim, o Wakamatsu foi de certa forma uma inspiração. Mas não apenas ele, que fez grandes filmes com cenas de sexo, mas produziu, por exemplo, O Império dos Sentidos, do Oshima.
Outros dos agradecimentos que fiz foi por me terem ajudado, por me terem colocado em contacto com outros; ao Carpenter agradeço o facto de me ter dado os direitos da sua música; o David Lynch também aceitou oferecer-me os direitos para uma música que queria usar no final, mas achei que poderia atrair demasiada atenção, por isso acabei por usar o Bach pelo Glenn Gould, as Goldberg Variations.
Diria que as inspirações foram mais de cenas da vida real e ainda exemplos de filmes em 3D que não funcionaram. Quando recebi o subsídio para fazer o filme em 3D percebi que não queria correr os mesmos riscos dos realizadores que vieram antes de mim, como por exemplo, uma montagem rápida, que não funciona, bem como uma câmara mais móvel.
JT – Quais foram então os filmes em 3D que mais o inspiraram?
GN – Foi o Pina, do Wim Wenders, Gravidade, porque é feito com longos planos, mas também os filmes em 3D antigos, como o House of Wax ou mesmo a reedição em 3D de O Feiticeiro de Oz, também por ser feito com planos longos. Ou seja, não estava a copiar ninguém, estava a tentar evitar erros de outros que fizeram mais filmes em 3D.
Houve ainda um outro filme que teve semelhanças com o meu, mas que o vi apenas na fase final. Alguém me aconselhou a ver o Bad Timing/Fora do Tempo, do Nicholas Roeg…
JT – Mencionou o filme do Oshima (O Império dos Sentidos), que será, a meu ver, até Love, o filme mais sensual e intenso…
GN – Sabe o que ajuda esse filme, é que se trata de um filme de época japonês, com guarda-roupa, que na Europa é considerado um filme de arte asiático, o que não é o caso no Japão. Foi banido durante muitos anos, depois veio com uma cópia com cortes.
Não sei se alguma vez irão editar uma versão completa no Japão. No entanto, passa na televisão francesa com frequência. Não me lembro de ver cenas de sexo explícito apresentadas com alegria num contexto normal.
JT – Pois é, não há mesmo…