Decidir pelos outros acerca da sua morte é uma forma de abuso de poder[1]. Ao decidir sem ouvir o doente ou sem respeitar os seus desejos é uma forma de manter o desequilíbrio que sempre existiu na relação médico-doente.
O médico que não escuta o seu doente escuda-se na perspectiva de que a relação entre si e o seu paciente é uma relação entre o saber e a ignorância, para além de não respeitar a pessoa que o doente é.
Contudo, nos últimos anos temos assistido ao desenvolvimento duma consciência médica e social de que os doentes possuem direitos e que a sua vontade deve ser respeitada. Neste sentido, as suas instruções devem ser conhecidas, o que significa que se deve abrir um espaço de escuta e atenção às manifestações mesmo não verbais do paciente.
Um dos princípios da ética médica e que deve orientar a prática é o respeito pela pessoa. Respeitar a pessoa significa, em termos de conduta médica, escutar os desejos e pedidos do doente[2].
O testamento de vida pode ser uma das formas de concretizar o respeito pela pessoa. Com efeito, no testamento de vida antecipam-se instruções respeitantes, nomeadamente, à abstenção de toda a obstinação terapêutica, o uso de analgésicos mesmo que possam vir a apressar a morte ou que se proceda, eventualmente, à eutanásia.
Na perspectiva de que, com a evolução da doença ou porque se entrou em coma ou houve uma diminuição da lucidez, o paciente se veja impossibilitado de exprimir os seus pedidos, o doente recorre a um documento escrito e por si assinado contendo essas instruções. Poderá também designar um representante que o substituirá na expressão dos seus desejos, se o não puder fazer.
Contudo, mesmo perante o pedido do doente, formulado através de um testamento de vida poderão colocar-se algumas questões: será que o médico deve suspender a sua própria avaliação ética e médica da situação perante aquele pedido? E até que ponto o signatário, colocado agora na real situação que está a passar, se isso fosse possível, manteria a sua decisão?
Mesmo perante o pedido formulado directa e verbalmente, levantam-se alguns problemas, nomeadamente o de saber até que ponto o paciente compreendeu bem o significado e as consequências da sua decisão e das alternativas que lhe restam.
Obedecer imediatamente ao pedido do doente seria um alienar da responsabilidade médica que em nenhum momento pode ser afastada. Até porque numa época em que aumenta o número de acções interpostas por pretensas vítimas de negligência médica, compreende-se que o pessoal médico se reúna de todos os cuidados de forma a evitar sentar-se no banco dos réus.
No caso dos pedidos eutanásicos, o médico deve também assegurar-se que o doente formula esse desejo de uma forma plenamente consciente[3] e livre de pressões, que a sua vontade é firme e reiterada. Deste modo, a relação médico-doente deve aprofundar-se o mais possível. O conhecimento mútuo será fundamental para conhecer o que o doente pensa.
A legislação portuguesa já acolhe, desde algum tempo, a possibilidade de o doente formular o seu testamento vital.
Este consiste num documento, registado electronicamente, onde se poderão indicar o tipo de tratamento ou os cuidados médicos que se pretende ou não receber, a partir do momento em que não seja possível manifestar a sua vontade.
No testamento vital é também possível nomear um ou mais procuradores de cuidados de saúde.
Para preencher o testamento vital o cidadão deve aceder à Área do Cidadão do Serviço Nacional de Saúde e descarregar o formulário com o Modelo de Directiva Antecipada de Vontade, preenchê-lo e entregar no ACES (Agrupamento de Centros de Saúde) ou ULS (Unidade Local de Saúde) da sua área de residência.
Assim, o Testamento Vital ficará registado no sistema informático da saúde, ficando assegurada a sua disponibilização imediata quando ou se for caso disso.
Com efeito, num contexto de urgência, o médico assistente poderá sempre consultar o Testamento Vital, através do Portal do Profissional.
O cidadão poderá, sempre que quiser, verificar se o seu Testamento Vital está correcto, activo, dentro do prazo. Como é evidente, essas directivas poderão sempre, ser alteradas pelo próprio.
[1] Paula LA MARNE, Éthiques de la fin de vie, Paris, Ellipses, 1999, p. 50
[2] Paula LA MARNE, op. cit., p. 12
[3] Numa perspectiva psicanalítica, as reticências em relação ao discurso consciente do sujeito seriam ainda maiores já que se deveriam admitir interferências do inconsciente