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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

Condenados

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Historiador, Professor Universitário; investigador da área de Ciência das Religiões

Se fosse há cem anos, romarias de populações sequiosas teriam procurado a fonte. Desta vez, cem dolentes e dolorosos anos depois, a notícia débil de que alguns crentes teriam assegurado o bailarico do astro-rei, não teve a força desejada e o único jornal que fez capa da revelação não vendeu tanto quanto queria.

Escrevi há dias que atravessamos a era do cansaço. Cansados de nós, dos outros, dos becos onde nos aprisionámos. A religião, em especial a religião em nós, é disso prova. Os arautos das soluções divinas inundam as redes sociais, com salmos e cantatas, citações bíblicas e verborreia de pastores, imagens com florezinhas e divindades – mas nenhum deles explica o que é a religião em nós, coisa afinal tão diversa da religião.

Não é invulgar querer saber o que é esta última: um culto de deuses pagãos no norte da Europa? Um meditar budista? Um desenrolar de pergaminho intocável? Os judeus com a sua Tora? A impressionante Caaba de Meca? O Muro das Lamentações de Jerusalém? As palavras do Papa? A opulência do Vaticano? As garotas nuas que se sentam em semicírculo diante do Stonehenge? As bombinhas do suicida que caiu no conto do vigário e acha que vai alcançar a vida feliz junto de umas dezenas de virgens?

E, em última análise, será que necessitamos mesmo de uma filosofia de vida?

Provavelmente, a religião nem estaria na moda dos debates não fosse ter regressado em força à política e ter assinado, no nosso século como noutros, algumas extraordinárias páginas de terror e morte.

doomed

Os últimos artigos que tenho escrito aqui no Jornal Tornado têm procurado olhar para o Islamismo, na tentativa (por vezes frustrante) de fazer entender uma realidade antiga que hoje é completamente distorcida no ocidente.

Recebi alguns comentários, é claro, mas os mais tristes, chocantes mesmo, são aqueles em que se nota a falta de cultura histórica dos aprendizes de crítico e, sobretudo, a total ausência de memória sobre o que somos enquanto seres da História.

Os mais jovens não sabem o que foi Auschzitz (e nada lhes diz o regime Nazi ou o do apartheid da África do Sul, ignoram que coisa terá sido as juntas militares na Grécia e as ditaduras de Franco (Espanha), Salazar (Portugal) e Pinochet (Chile); menos ainda, conhecem as lutas pela libertação da Argélia, da Irlanda do Norte e das colónias portuguesas de Angola e Moçambique, de São Tomé, Guiné, Cabo Verde ou Timor Leste; se lhes falarmos de organizações clandestinas – como a dos Tupamaros, no Uruguai – que lutavam contra as ditaduras militares instaladas em países da América do Sul, o seu rosto será mil vezes inexpressivo.

Como dar-lhes a entender a realidade distorcida que passa nos canais das televisões, quando eles pensam que o mundo nasceu há dias e tal como lhes é dado apreender?

(Sim, alguns jovens ficaram espantados quando escrevi sobre a paternidade europeia do terrorismo, onde chegou a existir um fundo de muitos milhões só para apoio da guerrilha urbana).

Albert Camus escreveu um dia que “a revolta não nasce, única e obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nascer do espectáculo da opressão cuja vítima é o outro”. Mas será que ao tornarmo-nos habitantes de hábitos a noção de revolta faz algum sentido? Não seremos cada vez mais oprimidos, entregando-nos à opressão como se esta fosse uma inevitabilidade?

As filosofias de vida que mais nos marcaram nos últimos dois séculos – o Humanismo, o Marxismo, o Materialismo, o Capitalismo – não têm qualquer base religiosa. Por isso talvez sejamos estes seres incultos e decepcionados, que desdenhamos da cultura e da aprendizagem, felizes na nossa imensa ignorância de relevo excepcional. Somos nós, os ocidentais da actualidade, de comportamentos ostentatórios, consumistas, vorazes e hedonistas, os condenados pela sentença que lavrámos: acabaremos por morrer às mãos da nossa ignorância.

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