…, pois se, por um lado, os textos fundadores declaram intenções universalistas e se se verifica a emergência de novos grupos com protagonismo social e político, por outro lado, exclusões antigas continuam a coexistir com a proclamação da igualdade.
Esta situação pode ser compreendida à luz da concepção de racionalidade que, entre o século XVIII e o século XX foi dominante. Dela saliento alguns aspectos: i) uma lógica de identidade que tenta abarcar na unidade do pensamento a alteridade das coisas, pessoas, situações; ii) a demarcação em relação às emoções, ao desejo e à afectividade; iii) o ideal de rigor, objectividade e imparcialidade que a acompanha e que se refere apenas à sua expressão no domínio científico.
Esta visão serviu de suporte a um esquema mental dicotómico a vários níveis, desde o cognitivo ao moral e ao social e político: bom/mau, norma/desvio, geral/particular, teoria/prática, público/privado.
A relação entre os lados da dicotomia não foi entendida de uma forma simétrica, mas, antes encarada hierarquicamente, sendo o primeiro pólo posicionado como superior, com conotação positiva e o segundo com menos valor e, portanto, com conotação negativa.
Assim, no que se refere à noção de espaço público, ela é associada ao debate racional, à sua suposta neutralidade, a uma certa superioridade de algumas esferas da vida e do pensamento em detrimento de outras.
A noção de privado liga-se ao predomínio do pré-racional e do emotivo. Esta forma de interpretar a realidade teve repercussões na dinâmica social, tendo contribuído para que certos grupos, os não proprietários, os de cor ou género diferente, permanecessem à margem.
As mulheres, por exemplo, mantiveram-se na obscuridade, sem possibilidade de ter voz pois eram identificadas, em termos de representação social, com o domínio dos afectos e dos sentimentos e com funções consideradas inerentes ao âmbito do privado, por exemplo, cuidar das crianças, dos idosos, dos doentes.
Na vida doméstica, seriam as mulheres as guardiãs morais e educadoras.
A todos os grupos percepcionados como limitados na sua racionalidade, era negado o acesso ao espaço público, o espaço por excelência do bem comum, do sistema público de direitos e da organização da sociedade no sentido da justiça.
Assim, como chamou a atenção Axel Honneth, muitos dos movimentos sociais podem ser explicados como lutas por reconhecimento, pois a partir das experiências negativas de desprezo, de privação de direitos e de várias formas de opressão, gera-se o desejo de reconhecimento, força impulsionadora dos processos de evolução social numa perspectiva de emancipação.
Hoje, na sequência de algumas transformações sociais e do desenvolvimento tecnológico, particularmente ao nível da informática, assistimos a dois movimentos complementares: o alargamento do público que passa a abranger uma comunidade que é mundial, e o esbatimento de fronteiras entre os dois domínios, público e privado, que não podem mais entender-se dicotomicamente.
Muito do que era considerado privado torna-se agora assunto de discussão pública e, muitas vezes, com a consequente tradução legislativa, sendo um caso bem exemplificativo desta situação, o da violência doméstica.
As questões da natalidade, o cuidado para com os mais débeis, o trabalho doméstico e outras temáticas que eram consideradas privadas são, hoje, assuntos debatidos publicamente e objecto de normativos legais.
Assiste-se, assim, e por diferentes formas, à invasão do espaço público pelo que antes era considerado privado.
E também acontece o movimento inverso: a política/espectáculo, o mediatismo das figuras públicas, o interesse pelas suas vidas (mais do que pelas suas ideias ou projectos políticos) é bem sintomático das grandes alterações que se estão a produzir.
O intimismo opera uma espécie de despolitização da vida pública: a atenção do eleitorado foca-se nos aspectos da personalidade e na revelação de aspectos da vida íntima das pessoas que têm – ou aspiram a ter – cargos públicos.
Discutem-se mais as pequenas histórias, as intrigas e os escândalos e menos as propostas políticas. Também o crescente indiferentismo face a tudo o que é participação política, por exemplo, nos actos eleitorais, atesta um certo esbatimento do público enquanto lugar de argumentação e de troca de razões.
(continua)