Estreia em Portugal a 16 de Março de 2017. Cannes ferveu! O Paulo Portugal esteve presente e conta-nos tudo.
Mas também é um filme como este que nos dá estímulo. E força!
Assim que Kléber e a sua equipa subiram a passadeira vermelha e expuseram ao mundo a sua contestação contra o novo governo de Temer, podemos dizer que Cannes passou a viver sob o signo de Aquário.
Não, esse momento começara logo na primeira sessão de imprensa, onde assistimos ao filme que mudou o festival. Ganhe ou não a Palma de Ouro, a segunda longa-metragem do realizador brasileiro Kléber Mendonça é um filme que se destaca dos que já vimos. Um autêntico poema à bela cidade de Recife, bem como ao florescente cinema que ali se produz, e que Kléber é a cabeça de proa.
Sim, Aquarius é o nosso filme para a Palma de Ouro. Mesmo que o júri liderado por George Miller não se comova, difícil será ignorar Sónia Braga no papel de Clara. Absolutamente portentosa.
Numa altura em que já foram exibidos mais de metade dos filmes em competição, começam a desenhar-se alguns candidatos à Palma de Ouro e aos prémios principais que serão conhecidos no próximo sábado. Mas sabemos que alguns dos mais fortes candidatos estão ainda por descobrir.
Depois do muito promissor O Som ao Redor, passado integralmente numa rua de Recife, o realizador escolhe agora a orla da cidade no seu magnífico filme onde durante duas horas e vinte minutos acompanhamos a vida emocionante de Clara, uma pernambucana de gema, interpretada com garra por um Sónia Braga de 65 anos, assinalando para já, a melhor interpretação feminina no festival. De longe. Até porque é uma espécie de instantâneo do Brasil de hoje.
Clara é uma ex-jornalista especializada em crítica musical, oriunda de uma classe favorecida do Recife, mas que sempre conviveu bem com o lado mais popular. Não é estranho que Kléber, ele próprio um ex-crítico de cinema, tenha conferido ao filme uma banda sonora com uma fantástica memória musical do Brasil, em que somos surpreendidos com a emoção dada pelos temas de Gilberto Gil, Maria Bethânia ou Roberto Carlos.
O filme começa logo bem, com o primeiro dos três capítulos, em 1986, com a imagem a preto e branco da orla da Avenida Boa Viagem e o ritmo disco e sincopado do tema Another One Bites The Dust, dos Queen, que nos apresenta pela primeira vez Clara, ainda aqui interpretada por Bárbara Colen, uma rapariga com o mesmo ar de Sónia Braga, mas dos tempos de Gabriela. Só o cabelo destoa, porque curtíssimo, vamos sabê-lo depois, devido a um cancro da mama curado.
Esta vai ser a história desta mulher, desde esse período, meados dos anos 80 até hoje, mas também a de um edifício de dois andares dos anos 40, portanto com a idade dela, que foi sobrevivendo à voragem imobiliária local, ficando assim acantonado como a casinha do famoso filme da Pixar, Up – Altamente. Além de ter sobrevivido a um cancro do peito nos anos 70 nunca perdeu a alegria de viver. Desde o ambiente familiar dessa época, cuja personagem é interpretada por Bárbara Colen, uma actriz mesmo muito parecida com… Gabriela.
Ultrapassada a nostalgia da primeira parte, passamos a conviver com uma pressão ensurdecedora, da imobiliária e até mesmo dos filhos, para que a derradeira inquilina do imóvel se desfaça do seu apartamento.
Onde a agressividade do empreiteiro promove diversos recursos, chegando mesmo a promover orgias nauseabundas no andar de cima, a participação de rituais de seitas religiosas e a uma operação final que deixamos para recordar, pois quase assume o foro de um filme de terror. E que é depois devolvido ao emissor.
O mais fantástico é que em todo este processo de pressão, Sónia Braga consegue devolver às personagens uma paz zen insuperável. Por isso mesmo dizemos que a Palma de interpretação feminina lhe pertence.
Ela é aquele edifício pequeno, rodeado de arranha-céus que a comprimem, mas ao rasgar o envelope com a oferta dos dois milhões de reais, esta mulher que venceu o cancro, prepara-se para uma batalha bem mais feroz.
Trailers do filme no Festival de Cannes:
Nota do autor: texto parcialmente publicado no jornal i