I, Daniel Blake, de Ken Loach, é o vencedor da Palma de Ouro nº 69. Jaclyn Jose, em Ma’Rosa, foi considerada a melhor das actrizes e Shahab Hosseni, de The Salesman, recebeu o prémio masculino. Olivier Assayas e Cristian Mungiu são os melhores realizadores.
Um novo mundo é possível. E necessário! Foi com esta palavra de ordem que o cineasta britânico Ken Loach, que completa 80 anos no próximo mês, superou o espanto da distinção e se dirigiu ao mundo, ao ganhar a sua segunda Palma de Ouro (a primeira, há dez anos, em 2006, com Brisa de Mudança). E não se absteve mesmo de apontar o dedo à extrema-direita, uma força que ganha espaço em França, e em vários países da Europa.
Esta edição irá por certo ficar conhecida como aquela onde no seu palmarés se detecta uma maior dimensão social, talvez apenas beliscada com a presença de Personal Shoppper, de Olivier Assayas, seguramente, a escolha mais insólita e questionável desta edição. Ao receber o prémio, Loach fez notar que o cinema é um sinal de protesto. Espero que esta tradição se mantenha aqui em Cannes.
Recorde-se que há dois anos atrás, Loach havia anunciado que iria reformar-se, mas acabou por voltar a vencer a Palma de Ouro. No seu discurso de agradecimento, iniciado mesmo num francês fluido, acabou por conduzir o foco para a relevante dimensão social abordada no seu filme, recordando em particular aqueles que não têm o suficiente para comer.
I, Daniel Blake aborda o problema de um homem e a sua deriva kafkiana com o sistema de saúde britânico para obter um certificado de invalidez, devido a uma doença cardíaca que o impede de trabalhar, mas não de ajudar uma jovem mãe solteira e desesperada para encontrar trabalho e manter alguma dignidade diante dos seus filhos menores.
Durante o seu discurso muito emotivo e vincado pela sua dimensão social e humanitária, dedicou o seu prémio àqueles que não têm o que comer. E prosseguiu: Temos de nos lembrar que vivemos num mundo perigoso, à beira de um abismo, provocado por um projecto de austeridade europeu e as ideias de um neo-liberalismo que poderão levar-nos à catástrofe. E deu exemplos concretos: Recordo a tragédia que se vive com os migrantes da Síria, o que se passa na Grécia, em Portugal, bem como todas as minorias.
No entanto, o recado final foi para a estrema direita que ganha terreno em França, que ameaça o Brexit e que se arrisca a eleger um presidente de extrema direita na Áustria. Um novo mundo é possível. E necessário! Sim, um novo mundo é possível. E necessário.
O melhor do cinema do mundo
Apesar de as escolhas do júri internacional não terem sido talvez totalmente pacíficas, ainda assim poderemos dizer que a 69ª edição do Festival de Cannes foi uma das mais ricas dos últimos anos. Tivemos a nata dos autores do world cinema com filmes que nos ofereceram algumas das histórias mais incríveis que iremos seguramente digerir ao longo do ano.
O primeiro momento alto da cerimónia de encerramento do festival ocorreu quando o actor francês Jean-Pierre Léaud subiu ao palco para receber a Palma de Ouro de Honra, a mesma que recebeu Oliveira há uns anos.
Nasci em Cannes, em 1959, com 400 Golpes do Truffaut. Mas nunca quis construir uma carreira, disse Léaud. De novo em Cannes, com o filme de Albert Serra, La Mort de Louis XIV; Tenho o mesmo sentimento de quando me deram o guião de 400 Golpes. Apesar deste discurso emocionado deste Grande Senhor do cinema francês, apenas uma pessoa se levantou para a merecidíssima standing ovation. Vergonha!
Mesmo com a ausência de alguns favoritos, como Aquarius, de Kléber Mendonça, Elle, de Paul Verhoeven, e Paterson, de Jim Jarmusch, temos de saudar as escolhas do júri. Quando chegou a vez do canadiano Xavier Dolan receber Grande Prémio do festival por Juste La Fin du Monde, avisou com a voz a tremer: Isto vai ser muito difícil. Bem diferente foi a reacção de Andrea Arnold, ao saber que American Honey, um on the road alucinado e alucinante de quase três horas, receberia o Prémio do Júri: I’m happy i wanna dance! disse radiante…
Quase nos esquecíamos de Ma’Rosa, mas o júri não. Por isso deu o prémio de melhor actriz a Jaclyn Jose, lavada em lágrimas e visivelmente surpreendida, naquele que foi talvez o mais inesperado da noite. Jacklyn interpreta uma mãe que vive numa favela de Manila e é forçada a vender droga para sustentar a família. Um prémio que acabou por gorar as expectativas de Sónia Braga, a preferida de muitos, e ainda Isabelle Huppert, em Elle, onde assume um insólito papel de uma mulher violada. Apenas quis vir com a minha filha. Obrigado Brillante, é mesmo um brilhante realizador, disse Jacklyn emocionada.
Do lado masculino, a distinção coube ao actor Shahab Hosseni, de The Salesman, de Asghard Farhadi. Ele que haveria também de erguer o galardão pelo melhor guião, pelo mesmo filme. Os meus filmes não são conhecidos por serem alegres, disse, mas espero com este prémio trazer alguma alegria ao meu povo.
Toni Erdmann vence Prémio da crítica
Desde o início um dos preferidos da crítica, Toni Erdmann, o terceiro filme da alemã Maren Ade, foi o eleito pela FIPRESCI, a federação internacional de críticos de cinema. Um estudo curioso da relação entre pai e filha e, sobretudo, a forma como o primeiro faz a segunda “sair da caixa”.
O prémio ecuménico, atribuído pelas associações de críticos religiosos foi entregue ao canadiano Xavier Dolan, pelo intenso e emotivo Juste la Fin du Monde, que deu ainda o Grande Prémio.
Palmarés Cannes 2016
Seleção Oficial
Palma de Ouro: I, Daniel Blake, de Ken Loach
Grande Prémio: Juste la Fin du Monde, Xavier Dolan
Prémio de Realização: Olivier Assayas, Personal Shopper, ex aequo, com Cristian Mungiu, Bacalaureat
Prémio do Júri: Andrea Arnold, American Honey
Prémio de interpretação feminina: Jaclyn Jose, Ma’Rosa, de Brillante Mendoza
Prémio de interpretação masculina: Shahab Hosseni, de The Salesman
Prémio de Argumento: Arghar Farhadi, Forushande (The Salesman/The Client)
Câmara de Ouro: Divines, de Houda Benyamina
Un Certain Regard
Prémio Un Certain Regard: The Happiest Day in the Life of Olli Maki, de Juho Kuosmanen
Prémio do Júri: Harmoniun, de Koji Fukada
Melhor Realizador: Matt Ross, por Captain Fantastic
Melhor Argumento: Delphine Coulin e Muriel Coulin, por The Stopover
Prémio Especial: The Red Turtle, por Michael Dudok de Wit
Prémios independentes
Prémios FIPRESCI
• Selecção Oficial: Toni Erdmann, de Maren Ade (Alemanha/Áustria)
• Prémio Um Certain Regard: Dogs, de Bogdan Mirica (Roménia/França)
• Quinzena dos Realizadores: Raw, de Julia Ducournau (Frnaça/Bélgica)
Prémio Ecuménico: Juste la Fin du Monde, de Xavier Dolan
Menções Honrosas: I, Daniel Blake, de Ken Loach, e American Honey, de Andrea Arnold
Secções Paralelas
Semana da Crítica: Mimosas, de Oliver Laxe
Quinzena da Crítica: Wolf and Sheep, de Shahrbanoo Sadat; Prémio SACD: The Together Project, de Sòlveig Anspach
(nota: Artigo originalmente publicado no Jornal i, aqui revisto e aumentado)