Ao receber a Palma de Ouro por I, Daniel Blake, Ken Loach aproveitou a montra do Festival de Cannes para dirigir uma mensagem ao mundo: “Receber este prémio é muito estranho para nós”, disse, por isso mesmo “temos de nos recordar de quem nos inspirou para o fazer”.
A mensagem não poderia ser mais clara, pois aqueles de quem nos temos de recordar são “os que não tinham que comer”. Esqueçam então os smokings, os vestidos de soirée, a passadeira vermelha. A altura é de abrir os olhos. E Ken Loach tem os olhos bem abertos. Há muito tempo.
Pela 13ª vez em competição em Cannes, um recorde absoluto, trouxe o seu cinema emergente (de emergência), de causa, de realismo social. Mas sem um fotograma sequer de apelo à emoção lacrimejante ao som de violinos. Não é esse o seu estilo. Nunca foi.
Claro que se trata de um cinema proletário – a coisa não está para menos! Por isso, atirou: “Temos de nos lembrar que vivemos num mundo perigoso, à beira de um abismo, devido ao projecto de austeridade europeu e com ideias de um neoliberalismo que poderão levar-nos à catástrofe.”
Não, não se trata sequer de um filme panfletário, mas sim daqueles que poderiam bem ser nossos familiares.
Por isso recordou os que vêm da Síria, e os desafios que vivem tanto a Grécia como Portugal e todas as minorias.
Sim, este é um que “carrega as minorias”, como disse. “O cinema é um sinal de protesto. Espero que esta tradição se mantenha.” No entanto, o velhote que completará 80 anos a 17 de Junho próximo, não quis abandonar o palco sem deixar uma mensagem clara àqueles que vivem com apreensão o crescimento da extrema direita: “Um novo mundo é possível. E necessário!”
Assistir ao discurso de Ken Loach acabou mesmo por ser um dos momentos do 69º Festival de Cannes. E que apenas serve de aperitivo antes de vermos na sala a história de Daniel Blake e a sua luta contra as instituições. Oportunamente, a distribuidora Midas Filmes adquiriu os direitos desse filme para Portugal. Bem como de outras duas jóias da competição: Aquarius, de Kléber Mendonça Filho e ainda Elle, de Paul Verhoeven. Palmas!
P.Portugal/J.Tornado – Imagino que o Ken e o Paul Laverty (o argumentista habitual) não tiveram falta de elementos para compor as personagens deste filme. Mas como chegaram a elas? Havia algum aspecto em particular que pretendia focar?
Ken Loach – Sim, há muitas mais histórias horrendas que se podem contar. Por exemplo, pessoas com deficiências, pessoas com tendências suicidas. O que pretendíamos eram personagens capazes, inteligentes, que não seriam vencidas por este sistema. O Dan (o protagonista, interpretado por Dave Johns, um actor habituado a stand up comedy) tem um ofício, está a par dos seus direitos, é um tipo afável, ou seja, não é uma vítima óbvia. O mesmo se passa com a Katie (Hayley Squires), a rapariga, que está a estudar numa universidade aberta, tem a sua ambição pessoal. Não é uma óbvia vítima. Queríamos pessoas que fossem competentes, mas que ainda assim fossem vencidas pelo sistema. Mas são personagens que têm um percurso maior, pois se fosse uma vítima óbvia seria mais vulnerável e o seu percurso mais curto.
O seu filme foi motivado por uma atitude de ira ou fúria contra o sistema?
Não podemos saber o que se passa e ficarmos indiferentes. A fúria faz parte disso. Estas são pessoas que conhecemos bem, pois são uma larga parte da população. São centenas de milhares. Nos últimos dois, três anos estamos a falar de dois a três milhões de pessoas. É algo épico. Portanto, a fúria faz parte disso. Ainda que parte dessa fúria muitos desconhecem. Mas é claro que queremos discutir, para além dessa fúria, temos de perceber como seguimos para diante, como mudamos as coisas.
Como explica que exista tanta resignação?
Isso tem a ver com o controlo. Temos uma classe política bastante controladora, uma imprensa muito subserviente, bem como uma televisão dócil, em particular BBC, mas não só. Se tivessem a ocasião de discutir o assunto, diriam simplesmente que é uma consequência do mercado livre e tentariam melhorar um pouco as coisas.
É muito difícil para as pessoas que não estão envolvidas na política ou em campanhas, lutar contra isto. A imprensa popular tem três alvos, os refugiados, emigrantes e as pessoas com benefícios. Ou atacam a mãe solteira porque recebe uma casa nova, ou vai de férias. São realmente histórias ferozes sobre pessoas que precisam de ajuda. É uma atmosfera bastante hostil, que deveremos tentar combater.
Pela forma como encara o mundo de hoje, pode dizer-se que sente que há mais medo?
Claro, há muito medo. Por onde começamos? Só o meu país, a Grã-Bretanha é responsável por grande parte desse medo. Veja-se o que fizemos no Iraque. Atacámos Faluja com armas químicas, matando e deixando inúmeras pessoas desfiguradas. Algo que continuará durante gerações. Um crime de guerra patrocinado pelo nosso Primeiro Ministro. Parte desse medo é traduzido pelo flagelo actual dos refugiados. É o medo dos barcos que atravessam o Mediterrâneo.
Tem medo também de uma forma pessoal?
Sim, claro. Até onde poderemos prever? Não sabemos o que nos vai acontecer ou às pessoas que vivem onde as águas irão subir. Há um grupo cada vez menor de pessoas que detêm a maior parte da riqueza da Terra. Serão hoje 62 as famílias que ganham mais do que metade do rendimento global? Acho que é algo assim. Na última década esse número foi reduzido a metade. Onde iremos parar? Cada vez mais pessoas não conseguem sustentar-se. A realidade dos apoios da UE irá liquidar as gerações futuras. Se é essa a realidade, eu não a quero.
Porque pretendeu conferir no filme um toque de humor a temas tão dramáticos?
Porque é assim que as pessoas são. Podemos ir a qualquer local de trabalho, obra ou mesmo um banco alimentar e escutamos boa disposição. Porque é assim que as pessoas são. Tirar isso não seria realista e seria pouco humano.
Já falámos de fúria, de medo, acha que existe uma réstia de esperança?
Uma réstia de esperança, que penso que está no filme, é das pessoas que oferecem ajuda. Como as pessoas que dirigem o banco alimentar. Normalmente, são mulheres e normalmente são avós. São óptimas, são brilhantes. Como, no filme, a mulher no centro social que oferece ajuda e quase perde o posto de trabalho. No fim, essa é que é a esperança.
Acha que a tecnologia tornou a burocracia ainda pior? Os call centers, os formulários online mais parecem destinados a afastar as pessoas.
É o que disse, servem apenas para alienar as pessoas. Hoje as pessoas podem passar uma hora ao telefone para ser atendidos. A tecnologia acaba por ser usada da forma que dará mais dinheiro ao empregador. Por exemplo, dantes para se fazer uma entrevista para televisão, aqui em Cannes, vinha o entrevistador, o cameraman e o homem do som. Hoje, uma pessoa apenas pode fazer isso tudo, mesmo que o resultado seja inferior.
Acha que a mudança passa por ter mais esquerda? Acha que é a solução?
Sim. É a única solução porque se baseia numa posse comum da propriedade e no planeamento. Se não planificarmos a utilização dos recursos mundiais, teremos um aumento gradual da temperatura do ar, o nível médio das águas irá subir com as consequências previsíveis. Mas poderão as grandes companhias inverter a sua actuação? É que terão sempre de maximizar os seus lucros. É que a obrigação de privilegiar o lucro é uma obrigação legal. É que se não maximizarem o seu custo outra corporação fá-lo-á em vez dela e o investimento passará de uma para a outra. Por isso continuarão a usar o combustível mais barato, para continuar a produzir o máximo possível.
A única forma de se parar com esse percurso é planificar. Mas não podemos planificar aquilo que não ganhamos. Não podemos planificar as multinacionais. Dir-nos-iam para irmos passear. Só que a esquerda não significa uma autoridade estalinista, mas sim democrática com algum poder nessa planificação.
Acha que o seu filme pode ajudar a mudar este estado de coisas na Europa?
Não sei se pode, é uma voz pequena dentro de um coro grande. Não sei, talvez possa encorajar algumas pessoas a lutar contra o sistema. Quando se faz um filme, a primeira responsabilidade é sobre a verdade daquilo que tratamos. Seja da forma que for exprimida. É isso que procuramos fazer.
No caso do meu país, Portugal, onde nos últimos anos fomos um dos alunos mais aplicados do modo de fazer economia na União Europeia, mas com resultados desastrosos. O que sucede é que agora com um governo de esquerda, as coisas não estão tão mal como (quase) todos esperavam.
As pessoas não são idiotas e não se deixam enganar várias vezes pelos mesmos. E o que sucedeu em Portugal foi a reacção à vitória inevitável do capitalismo de monopólio que produziu esta pobreza e desespero, nesse sentido teremos essa inevitabilidade. Se quisermos mudar a face da EU para uma organização que apoie todos os países e que tente implantar alguma justiça entre os países do Ocidente e Oriente, teremos de fazer como os portugueses. De forma a que as pessoas não tenham de abandonar o seu país para trabalhar num bar em vez de ser médicos, por exemplo. Tem de haver um certo equilíbrio.
E tentar evitar a realidade que sucedeu à Grécia?
Os gregos, tal como agora os portugueses, decidiram lutar contra o sistema. Mas os dirigentes em Bruxelas ou Estrasburgo fizeram saber que os iriam punir. Pela ousadia de um pensamento independente esse seria o custo que teriam de pagar. Necessariamente, a esquerda acabou por desabar aí também. Desde logo porque não conseguiu ter o apoio da esquerda na Europa, que não tinha força suficiente. Por isso, a esquerda na Grécia teve de sofrer. Neste momento, as pessoas que estão no poder, aquilo que chama realidade, são os nossos inimigos. A questão é como lutamos.
Como vê então o futuro desta Europa imprevisível, onde existe até o espectro do Brexit? É complicado…
É complicado, de facto. E eu não tenho a resposta. Se ficarmos na EU iremos deparar-nos com a possibilidade de um governo neoliberal; se sairmos o país irá virar ainda mais à direita. Portanto, é uma escola táctica. Se quisermos mudar a cara da EU para um rosto mais igualitário e com mais justiça.
Mas como se chega lá?
Das duas uma, com a GB ficando e tentando mudar a organização ou saindo e abrindo espaço na extrema-direita. Por mim, acho que o melhor é ficar na EU e tentando fazer alianças com outros grupos de esquerda.
Acredita numa aliança de esquerda europeia como falou na conferência de imprensa?
Sim, acredito. O que importa é definir o conceito de esquerda, porque o que aconteceu na União Soviética não é a nossa ideia de esquerda. É uma distorção terrível. Era a versão estalinista do comunismo, da polícia secreta, onde não havia democracia. Na tradição de onde venho, o socialismo e a democracia estão indissoluvelmente ligados. Não se pode ter um sem o outro. Temos de ter uma aliança de esquerdas pela Europa, que inclua a França, Espanha, Grécia, Portugal, para que haja uma verdadeira esquerda na Europa e que não coloque no topo das suas opções os interesses dos grandes negócios.
O que acha do escândalo dos “Papéis do Panamá” e porque razão nada muda?
É essa a ironia, as pessoas lêem o que se passa com os “Papéis do Panamá” e a evasão fiscal e continuarão a protestar que o meu vizinho ganhava mais dez libras do Estado. É uma luta pela tomada de consciência.
Pensou na elaboração do argumento com o Paul Laverty em dar ao Daniel um final feliz após os seus esforços?
Acho que seria uma direcção errada para a história, pois trata-se de uma situação trágica. A essência é trágica. Algumas pessoas sobreviverão. A Katie sobrevive. Mas é o seu corpo que se torna num produto. Ela torna-se numa empresária vendendo-se a ela própria. Mas isso é o que eles querem. Tudo é uma mercadoria.
É essa a mensagem do neoliberalismo. Será a empresária do ano! (risos) É assim que sobrevive. Não temos tempo, mas poderia contar-lhe histórias escabrosas. Como a de um homem que morreu enquanto estava a dar a sua entrevista para os serviços sociais. Ficou com falta de respiração e não pode terminar o seu teste. Teve um ataque cardíaco. E foi sancionado porque o teste não foi completado. Poderia ter colocado isso no filme, mas seria demasiado estremado.
Como é que trabalha com o Paul Laverty? Tem alguma espécie de rotina?
Ele vive na Escócia e eu na parte ocidental de Inglaterra. Trocamos mensagens, normalmente sobre resultados do futebol (risos). Mas também sobre histórias que aparecem nos jornais. Ele envia-me recortes se acha que tem interesse.
Há dois anos atrás, disse que iria retirar-se. O que o fez voltar atrás?
Sim, acho que dizer isso foi algo idiota. O filme anterior (O Salão de Jimmy) foi um filme de época e estive muito tempo fora de casa, durante um ano e meio. Foi um pouco pesado. Mas depois de ficar em casa sentado durante uma semana ficamos a pensar… (risos). É tempo de fazer qualquer coisa.
O Ken que tem uma família grande, como faz nestas alturas em que está fora durante muito tempo? É difícil encontrar tempo para estar com eles?
É verdade que não tenho sido um avô tão dedicado quanto gostaria. É uma pena. Necessitamos de duas vidas.