O novo défice orçamental de 170,5 mil milhões de reais (aproximadamente 42,6 mil milhões de euros) -corresponde a cerca do dobro do que havia sido apresentado pelo governo Dilma (97,6 mil milhões ou 24,4 mil milhões de euros) há pouco tempo atrás.
Os mesmos grupos políticos que no começo do ano levantavam várias dificuldades ao anterior executivo, aprovando até, só para criar problema, vários aumentos de despesa – as chamadas “pautas-bomba”, mostraram agora plena boa vontade para com o que lhes foi pedido pelo presidente interino.
Temer e o novo ministro das Finanças, Henrique Meirelles, justificaram o aumento do défice com aquilo a que chamam o “descalabro das contas públicas” ocorrido com Dilma, propondo-se agora arrumar a casa, pelo que já apresentaram uma proposta de emenda constitucional no sentido de limitar os aumentos anuais de despesa ao índice de inflação do ano anterior.
A ampliação do défice foi um primeiro teste da solidez da nova maioria, e traduz o estado de graça com que ainda conta o novo executivo, apesar do novo escândalo que levou ontem à demissão do ministro do plano Romero Jucá, presidente do PMDB e homem forte de Temer.
Com um défice tão amplo, Temer ganha tempo, assegura tranquilidade para poder manter a máquina do Estado a funcionar e alguma margem de manobra pelo menos até final do ano.
É pouco provável, no entanto, que esse estado de graça se mantenha por muito tempo. Agora foi relativamente fácil, já que se tratou de garantir dinheiro para manter despesas já aprovadas, mas o que acontecerá quando o novo governo quiser aplicar as medidas de contenção que anunciou, designadamente cortes na saúde e educação, sobretudo quando não há quaisquer medidas que atinjam os interesses financeiros nem as grandes fortunas?
Com eleições locais marcadas para Outubro, os deputados certamente não quererão arriscar medidas impopulares.
E falta a Temer, com um governo recheado de figuras como Jucá indiciadas ou investigadas em processos judiciais, a dimensão moral capaz de se impor para além dos jogos de bastidores. Basta lembrar que o próprio líder do governo na Câmara dos Deputados é suspeito de participar em tentativa de homicídio… Há demasiados rabos de palha para que tudo possa acontecer com transparência e elevação.
O que revelam as gravações
Basicamente, o que revelam as gravações agora divulgadas – que levaram ao afastamento de Jucá e podem ainda causar mais estragos – é uma preocupação generalizada dos políticos com as investigações da Lava Jato e uma tentativa de celebrar um pacto entre todos os poderes – com vista a circunscrever o alcance dessas mesmas investigações.
Para isso, percebe-se agora que Dilma foi usada como bode expiatório – sacrificando-a no altar da opinião pública através do impeachment para ir ao encontro do descontentamento manifestado nas grandes manifestações de rua de Março/Abril e procurando depois, com a instalação de Temer no poder e através de um entendimento entre políticos, media, chefias militares e judiciário, basicamente travar a Lava Jato, devolvendo estabilidade ao sistema.
Essa estabilidade começou a falhar a partir do momento em que Lula prescindiu do direito constitucional de nomear o procurador geral da república, concordando em designar sempre o primeiro de uma lista de três apresentada pelos próprios procuradores. Isso conferiu à PGR – um órgão não eleito – um poder que nunca tinha tido e que desde aí só tem vindo a aumentar.
Depois, Dilma aprovou, sem mais regulamentação, a figura da delação premiada, que conferiu à polícia um imenso poder sobre os investigados.
Foram esses dois elementos que soltaram o génio das investigações policiais para fora da garrafa.
A Lava Jato e, em particular, o juiz Sérgio Moro através da divulgação de gravações em momentos cruciais do processo político, foi instrumental para acentuar a crítica ao governo do PT, isolando-o ainda mais junto da população e criando condições para o impeachment.
Mas, cumprida essa missão, muitos políticos temem agora que o feitiço se vire contra o feiticeiro e pretendem por isso um entendimento (“um pacto”) entre todos para tentar recolocar o génio dentro da garrafa. Caso contrário, muitas mais cabeças poderão rolar e ninguém se salva.
No fundo, não há muita diferença entre as gravações de Lula e agora estas – todas revelam uma inquietação e uma saturação com as operações policiais e um medo generalizado de que todo o sistema possa ruir.
O que tem sido e por enquanto continua a ser diferente é a duplicidade de critérios, com incidência crítica sobre o PT.
Vejamos – enquanto Lula não pôde tomar posse, afirmando um juiz do Supremo que a sua nomeação para o governo era uma tentativa de obstrução de justiça, agora, Temer leva sem problemas para o executivo uma série de nomes sob investigação… Por outro lado, quando o senador Delcídio do Amaral – ex-líder do governo Dilma na Câmara Alta – foi apanhado em gravações, o STF ordenou de imediato a sua prisão que acabaria por resultar numa delação premiada que comprometeu mais gente; mas Romero Jucá voltou tranquilamente ao Senado como se nada fora e continua até a assessorar o executivo Temer.
Dois pesos, duas medias, resultados diversos. Um jogo de luz e sombras com facas afiadas, por enquanto dirigidas pelos mestres do jogo sobretudo contra o PT, através do fine tuning das reacções dirigido pelos mass media e do timing das divulgações.
Repare-se – as gravações agora divulgadas, já estavam na posse da PGR em Março. Se tivessem sido divulgadas logo, o resultado da votação do impeachment, sobretudo no Senado, teria sido idêntico?
Há todavia um factor de imprevisibilidade que deixa o jogo em aberto, podendo este ainda atingir, como um boomerang, alguns dos seus próprios mestres. Até porque não há total coincidência de posições entre os que mexem os fios nos bastidores.
Aparentemente, todos quiseram forçar o afastamento de Dilma, mas nem todos estarão agora de acordo quanto a saber até onde o jogo do poder deve ir.
Aguardemos, portanto, o desenrolar dos próximos capítulos.