No filme do Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964), sabia-se quem era o “bem” e quem era o “mal” no enredo de pobres camponeses contra poderosos latifundiários.
O Brasil de maio de 2016 vive esse mesmo velho eterno confronto, Deus e o Diabo continuam em duelo, mas a complexidade do modo como se apresentam e transmutam é amplificada pelo papel da mídia. O esforço de compreensão é ainda maior do que os autores do cinema novo exigiam de seu público, caso de Glauber com sua narrativa fragmentada e cheia de mensagens subliminares.
Digamos que Deus, nessa nossa análise, é o onipotente (elite) e, Diabo, aquele que ameaça o poder (povo). Com essa ideia em mente, vamos às manchetes. Didaticamente.
Teorias da imparcialidade
Folha de S. Paulo decidiu questionar, pela primeira vez, a conduta do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, ao criticar sua decisão de “devolver” dois pedidos de investigação formulados pela procuradoria-geral da República, contra o senador Aécio Neves (PSDB-MG) – um sobre corrupção em Furnas e outro sobre o mensalão tucano, ambos a partir da delação de Delcídio Amaral; “É por isso mesmo difícil entender as duas decisões de Gilmar Mendes. Ao criar obstáculos para o Ministério Público Federal, o ministro do STF não permite nem que se inicie uma tentativa de esclarecer os episódios narrados por Delcídio”, diz o texto do jornal de Otávio Frias Filho.
Editorial diz ainda que Gilmar deveria “observar com a máxima atenção a cartilha do Judiciário”, e justifica: “Ainda que não fosse pelo clima de exaltação na política, magistrados em geral deveriam evitar medidas que subvertam a prática forense. Especialmente em tempos de Lava Jato, comportamentos inusuais sempre darão ensejo à formulação de teorias conspiratórias.”
Teorias da conspiração
Enquanto a Folha acusa Gilmar, em defesa da imparcialidade no Supremo, o articulista do Globo, Ricardo Noblat, fala objetivamente em “conspiração”:
“Sejamos francos: políticos com medo de serem presos conspiraram, sim, para derrubar a presidente Dilma; (…) Os donos do poder, fossem eles políticos ou não, sempre souberam construir acordos e preservar a própria pele em detrimento da moral e da Justiça. Por extensão, também suas fortunas e posições na hierarquia social”.
Antes mesmo dos áudios de Romero Jucá, Noblat já havia dito que o impeachment seria necessário para que políticos atolados na Lava Jato salvassem seus próprios pescoços; análise de Noblat desta segunda-feira não fala em “pedaladas” – o pretexto oficial da queda de Dilma Rousseff, presidente afastada.
Família que rouba unida
Essa prática que une pais e filhos é ancestral no país e no mundo, mas em tempos recentes a imprensa estava privilegiando a “roubalheira” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu filho, o Lulinha. Eis que O Estado de S.Paulo agora aparece com notícia do “Michelzinho”, de apenas 7 anos.
Em reportagem José Roberto de Toledo e Daniel Bramatti , afirmam que, com apenas 7 anos de idade, Michel Miguel Elias Temer Lulia Filho, conhecido como Michelzinho, já é um milionário. Ele herdou do pai dois imóveis cujos valores somados superam R$ 2 milhões. Segundo a assessoria de Temer, os imóveis foram doados como antecipação de herança, em operação regular.
Os jornalistas, no entanto, apontam que os imóveis foram declarados abaixo do valor real. “Mesmo assim, na declaração de bens que Temer apresentou à Justiça Eleitoral em 2014, cada conjunto é avaliado em apenas R$ 190 mil. Isso é comum nas declarações de políticos, pois os imóveis costumam ser declarados pelo valor de quando foram comprados. A legislação não obriga a atualização do valor.”
A reportagem também revela que o patrimônio declarado de Temer cresceu bem acima da inflação nos últimos anos. “O patrimônio do presidente interino cresceu rapidamente desde 2006. Naquele ano, Temer foi candidato a deputado federal e declarou bens no valor de R$ 2.293.645,53. Se corrigido pelo IGP-M da Fundação Getúlio Vargas, eles corresponderiam, em 2014, a R$ 3.678.526,22. Porém, seu patrimônio declarado à Justiça Eleitoral em 2014 já havia crescido para R$ 7.521.799,27. Ou seja, mais do que dobrou acima da inflação entre duas eleições – e isso sem levar em conta a valorização dos imóveis.”
Fora transparência, pede a Globo
Principal fiadora do processo de impeachment, a Globo voltou a pedir a demissão de um ministro do governo interino de Michel Temer nesta segunda-feira 30, a fim de salvar o afastamento da presidente Dilma Rousseff.
O alvo do novo escândalo que vem sendo provocado com os áudios de Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, é o ministro da Transparência, Fabiano Silveira, flagrado em reunião com o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), criticando a Lava Jato e orientando Renan sobre a forma de agir diante da investigação.
Como fez com Romero Jucá na semana passada, o Grupo Globo publicou um editorial extemporâneo para pedir a demissão de Silveira. “O presidente interino, Michel Temer, precisa aplicar a mesma regra que valeu para Romero Jucá”, defende o texto, que elogia a rapidez de Temer na saída de Jucá e na ação de “estancar a sangria” da Operação Lava Jato.
Apenas com a demissão do ministro da Transparência, prossegue o jornal, “será levado a sério o compromisso público assumido pelo presidente de apoiar a Operação e todo o combate à corrupção”.
Jornalismo isento
Definitivamente, concluída essa breve e despretensiosa análise, somada ao estudo apenas dos últimos dois meses de noticiário na grande imprensa, pode-se ter a certeza de que temos um jornalismo isento. Isento de escrúpulos para defender o que seja preciso na manutenção do estado vigente. Que nenhum leitor se iluda, a indústria da comunicação está sempre do lado de Deus e não do Diabo que inferniza a vida política e financeira do país, exigindo direitos, expondo contradições, querendo que uma maioria de pobres seja protegida com benefícios na saúde e educação.
Fontes: Jornal247, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo
Nota: a autora escreve em português do Brasil