O assédio moral no local de trabalho – que, finalmente, começa a ser conhecido e analisado entre nós – tem, enquanto conflito laboral, ínsitos três elementos fundamentais:
1. O ser um processo, ou seja, não um fenómeno ou um facto isolado, mesmo que de particular gravidade, mas antes um conjunto mais ou menos encadeado de actos e condutas, que ocorrem com um mínimo de periodicidade (por exemplo, pelo menos uma vez por semana ou por mês) e de reiteração (designadamente perdurando ao longo de 6 meses), e que até podem ser, cada um de per si, formalmente lícitos mas que nesse seu conjunto assumem uma natureza ilícita.
2. A circunstância de esse conjunto mais ou menos periódico e reiterado de condutas ter por objectivo e/ou por resultado o atingimento da dignidade da vítima e o esfacelamento da sua integridade moral e também física, quebrando-lhe a sua capacidade de resistência relativamente a algo que não deseja, e buscando assim levá-la a “quebrar” e a ceder.
O assédio moral no trabalho não se confunde, pois, nem com o stress (ainda que este possa, por vezes, ser um instrumento de prática daquele), nem com uma relação profissional dura, nem sequer com um mero e isolado episódio mais violento e também ele ilícito (designadamente, um incidente ou uma discussão particularmente intensos mas sem sequelas).
3. O aproveitamento da debilidade ou fragilidade da vítima ou de um seu autêntico “estado de necessidade” decorrente da sua posição profissional hierarquicamente inferior, o que é o mais frequente, ou da precariedade do respectivo vínculo laboral e da extrema necessidade da manutenção deste para conseguir garantir a subsistência própria e dos filhos, por exemplo, ou até da chantagem relativa à revelação de factos incómodos ou desprimorosos relativos à respectiva vida pessoal e/ou familiar.
As técnicas e os instrumentos do assédio moral
Os “instrumentos” ou “armas” dos processos de assédio podem ser bastante variados mas, integrando sempre aqueles três elementos constitutivos, obedecem de uma forma geral a uma tipologia bem conhecida:
– O “emprateleiramento” forçado – sobretudo quando aplicado a trabalhadores bastante qualificados e responsáveis e/ou a quem tal desocupação forçada arruinará não só o seu equilíbrio emocional e psíquico mas também a sua principal mais-valia, ou seja, os respectivos currículo e carreira –, bem como a surménage (sobre-acumulação de trabalho) propositadamente criada com o objectivo de autenticamente “afogar” o trabalhador com a atribuição de tarefas manifestamente excessivas e/ou de objectivos clara e consabidamente inatingíveis;
– sistemática produção de críticas manifestamente exageradas, procurando fazer crer que ele “não presta para nada” ou “não acerta uma”;
– utilização de meios e de medidas propositadamente achincalhantes (utilização de berros, gritos, gestos ameaçadores ou obscenos, críticas excessivas feitas à frente de todos e em particular dos inferiores hierárquicos do visado, ou até de clientes);
– impedimento de que este possa falar e se possa defender;
– estabelecimento de by-passes na estrutura hierárquica fazendo, por exemplo, com que o quadro visado veja, sem qualquer informação ou explicação, os seus subordinados serem chamados a reunirem e a serem colocados a reportar directamente a outrém;
– ausência de qualquer justificação seja para que medida for;
– assunção de posturas claramente discriminatórias quanto a estas ou outras matérias;
– imposição ostensiva e intencional do isolamento social do trabalhador (por exemplo, em instalações tipo “aquário” em que é visto por todos numa posição humilhante), impedindo-o de falar com os colegas e apresentando-o organizativamente como “alguém a evitar” (como se tivesse lepra…).
Tudo isto, dentro da lógica dos “sinais para a organização” acerca do que acontece aos que ousem “levantar problemas” (logo designados de troublemakers), bem como aos que com eles ousem conviver ou sequer falar.
A isto se somam as desconsiderações contínuas, por exemplo, não cumprimentar nem responder a cumprimentos, proferimento de comentários jocosos, designadamente escarnecendo da figura ou de algum defeito físico, não aceitação, e mesmo insinuações acerca da falsidade das mesmas, das justificações para as situações de doença, ostensividade na manutenção e até no agravamento das condições que estão apontadas como contribuindo ou determinando a própria doença.
Técnicas de provocação da “máxima pressão” e da auto-culpabilização da vítima
Uma das técnicas características destes processos de assédio é também a de colocar a vítima em permanente tensão (por exemplo, através da chamada “gestão de expectativas”, dizendo-lhe simplesmente algo como “olhe, um dia destes vou ter de falar consigo”, criando e prolongando quanto possível a agonia da espera por algo propositadamente indefinido e indefinível) ou de procurar fazer a vítima persuadir-se de que não só pelo menos algumas das críticas que lhe são dirigidas terão alguma razão de ser, como também de que será dela a “culpa”, senão total, pelo menos parcial, de se encontrar na situação em que se encontra, numa inversão total de valores e de realidades!
É assim também lastimavelmente típico que o trabalhador competente e zeloso, que todavia se tornou incómodo por recusar ilegalidades ou comportamentos anti-éticos que, em sua consciência, considerava inaceitáveis, tendo um contrato sem prazo e, mais, havendo ousado não aceitar o “mútuo acordo de rescisão” que logo lhe foi proposto, frequentemente “passar de bestial a besta”, ser sujeito a um processo sucessivamente agravado deste tipo de ofensas e ataques, a que também não raramente se soma a retirada de benefícios supostamente na discricionariedade da empresa, tais como o percentual remuneratório pago a título de Isenção de Horário de Trabalho, ou de “subsídio de disponibilidade e desempenho”, ou da viatura ou telemóvel para uso total, etc., etc.). E, quando porventura reclame ou, por razões de doença, se veja forçado a entrar de baixa, ver propalada, como “justificação” a “tese oficial”, própria da pomposamente denominada “cultura da empresa”, de que “se está assim, a si próprio o deve…” ou de que “infelizmente não corresponde ao perfil esperado”.
O modo mais correcto de reagir perante o assédio moral
Mas como pode e deve então a vítima de um processo de assédio moral reagir?
Antes de mais, é mesmo muito importante a detecção precoce da existência de um processo de assédio, até porque não nos devemos esquecer de que uma coisa que todos os estudos inequivocamente demonstram é que, depois de conhecer o fenómeno e as suas características essenciais, é sempre bastante superior o número de trabalhadores que afinal percepcionam e reconhecem já ter sido dele vítimas.
Depois, é também muito relevante procurar, e desde o mais cedo possível, reunir o máximo de provas de tudo o que interesse para a demonstração da existência do assédio e das suas consequências. Por um lado, e antes que todas as gavetas, portas e janelas se fechem, obter e guardar em local seguro (fora da Empresa) todos os comunicados, ordens de serviço, directrizes, ordens directas, cartas, etc. que possam demonstrar, por exemplo, a diversidade de critérios usados no tratamento da vítima em comparação com os seus colegas e/ou a ausência de adopção de medidas por parte da organização, não obstante os seus protestos e reclamações.
Por outro lado, é importantíssimo contrariar o autêntico “endeusamento da oralidade” que hoje em dia se pratica em organizações empresariais prevaricadoras, tomando posição por escrito quanto a tudo o que de errado esteja a ser decidido e praticado relativamente ao trabalhador vítima, e também fazendo como que “actas” das reuniões realizadas (onde o mesmo trabalhador está normalmente sozinho e, logo, impossibilitado de, depois, produzir prova testemunhal do que nelas se passou).
E ter sempre presente que os meios de comunicação da titularidade ou sob controle da entidade empregadora (mails, faxes, computadores, telemóveis, câmaras de vídeo-vigilância) são devassáveis e, tão frequente quanto impunemente, devassados.
É também muito relevante, e o mais cedo possível, partilhar o máximo possível de toda a experiência com pessoas próximas (um colega digno de confiança, mas também amigos e familiares) que, para além de uma ajuda pessoal insubstituível, poderão constituir depois uma prova testemunhal muito relevante, designadamente acerca dos chamados “factos instrumentais” da causa.
Por fim, é de igual modo importante ir tendo o acompanhamento jurídico adequado e ir obtendo o apoio e provas de natureza médica e psicológica.
O trabalhador vítima de assédio não deve ter qualquer pejo em recorrer a ajuda especializada. Desde logo, de natureza legal quanto a cada um dos passos que deve dar, às respostas que deve apresentar, ao documento que deve contestar, e em que termos.
Mas também do ponto de vista médico, por alguém que não apenas o ajude e trate, mas que, de igual modo, amanhã possa elaborar um relatório escrito (documento de prova muito relevante) ou até testemunhar ao Tribunal a natureza e gravidade dos danos sofridos pelo trabalhador.
Mas, é também imperioso que não dê nem aparente mostras de fraqueza perante quem o hostiliza e persegue, que consiga manter o sangue-frio suficiente para evitar cair nas habituais armadilhas, como a de responder à provocação e agir ou responder mais dura ou até mal educadamente a quem o persegue e provoca, fornecendo-lhe assim o almejado pretexto para uma qualquer acção disciplinar, como sobretudo que consiga não deixar que o agressor lhe ocupe o espírito e lhe destrua a alma.
Há, na verdade, muito mais Mundo do que alguns desses autênticos “Torquemadas” julgam! E a vítima deve sempre agir, pensar e sentir não apenas que não será um agressor desses que o fará separar-se da sua família, distanciar-se dos seus amigos, ou afastar-se da actividade cívica, política, cultural, desportiva ou associativa em que se sente realizado, e antes deve fazer um esforço para continuar a sentir-se.
Este é um combate duro, desequilibrado, muitas vezes demorado. Mas é um combate pela afirmação e defesa de valores fundamentais da nossa Sociedade e no qual não apenas podem, como devem, ser obtidas vitórias!
Em breve voltarei a este tema do assédio moral, agora acerca da forma claramente incipiente e insuficiente como actuam em relação a ele diversas entidades, em particular os nossos tribunais e a ACT.