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Domingo, Dezembro 22, 2024

A UBER, um lobo com pele de cordeiro

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

Mas o problema que, independentemente dos incidentes e das declarações menos propositadas deste ou daqueloutro, permanece é o seguinte: o que é afinal a UBER e o que pretende ela?

Nestes últimos dias todos fomos – sobretudo a propósito da cobertura jornalística da manifestação dos taxistas na passada segunda feira – bombardeados com um verdadeiro golpe de manipulação da opinião pública, fazendo inclusive com que uma parte desta passasse a demonstrar simpatia pela UBER e a atacar a luta dos taxistas.

Horas e horas a fio de reprodução ad nauseam das mesmas imagens, sempre as mesmas (ataque a uma viatura da UBER, início de confronto com a polícia, insultos a um motorista da dita UBER e declarações de uns 3 ou 4 dos cerca de 5.000 taxistas manifestantes) serviram para escamotear a essência do problema que nenhum dos órgãos da chamada comunicação social que fez tal tipo de cobertura se prestou a estudar e a investigar, antes entremeando tais imagens com gongóricas afirmações de elogio da modernidade, da revolução digital e coisas quejandas acerca da UBER.

Mas o problema que, independentemente dos incidentes e das declarações menos propositadas deste ou daqueloutro, permanece é o seguinte: o que é afinal a UBER e o que pretende ela?

A UBER, como empresa, não é formalmente uma transportadora, mas sim uma grande multinacional americana da área tecnológica, fundada em 2009, com sede em S. Francisco, na Califórnia, e que funciona desde 2010 como uma plataforma informática com uma aplicação E-HAILING a smartphones que permite pôr clientes em contacto com motoristas. Estes, por seu turno, têm vínculos precários (são considerados “parceiros”) e ganham à percentagem, em função da procura e oferta dos serviços e estão assim em permanente concorrência uns com os outros.

Avaliada em Junho de 2014 em 18,2 mil milhões de dólares e com valorizações anuais de 40.000 milhões de dólares, a UBER tem como investidores, entre outros, a Goldman Sachs e a Google e é um autêntico gigante a nível mundial.

Ora o que sucede é que, precisamente sob o pretexto de que não é uma transportadora, a UBER actua à margem das leis respeitantes ao transporte rodoviário de passageiros (nomeadamente em veículos ligeiros), as suas viaturas – por enquanto novas em folha, como convém – não têm de ter alvará, não estão sujeitas às fiscalizações periódicas dos táxis, não é aos seus condutores exigida nem a mesma certificação (designadamente criminal) nem a mesma formação nem os períodos máximos de trabalho que são exigidos e fixados aos dos táxis e, sobretudo, os seus serviços não estão sujeitos a qualquer tarifário.

Tal permite-lhe, numa primeira fase, como já aconteceu, por exemplo, no México, destruir a concorrência e o serviço de táxi e conquistar o mercado cobrando taxas muito baixas (a sua gigantesca capitalização permite-lhe aguentar um, dois ou mesmo mais anos com prejuízos) para logo depois passar a fixar os preços que bem entende, e já hoje (como sucedeu nos Estados Unidos aquando da passagem de um furacão) em caso de grandes engarrafamentos devido a catástrofes, a acidentes ou a greves, cobrar preços absolutamente astronómicos aos mesmos clientes que pouco antes admiravam os valores módicos praticados.

Por outro lado – questão esta de que quase ninguém fala – se a UBER consegue ter uma maior eficácia na definição de trajectos das suas viaturas até aos clientes e destes até ao respectivo destino, é unicamente porque centraliza, gere e utiliza os dados de localização dos telemóveis dos mesmos clientes, sem que haja qualquer protecção do tratamento dos mesmos dados.

Assim, folclores e manobras de diversão comunicacionais à parte, o que está aqui em causa é uma actuação predatória de longo alcance que nada tem que ver com a promoção da modernidade e da tecnologia mas apenas com a busca e maximização dos lucros (que, no caso da UBER Portugal, até vão para a Holanda onde ela tem a respectiva sede…) à custa, para já, dos milhares de trabalhadores por conta de outrém ou por conta própria e seus familiares do sector dos táxis. Depois, dos próprios motoristas da UBER, tratados e pagos miseravelmente e despedidos ao mínimo pretexto, como tem sido denunciado por todo o mundo. E, finalmente, passada a fase da sedução e da conquista do mercado, à custa dos próprios clientes, inclusive daqueles que agora tão rendidos se mostram à “bondade” e “afabilidade” da UBER.

Três observações finais

Por um lado, e como é óbvio, nada do que fica dito retira ou escamoteia a necessidade de uma melhor regulação da actividade dos táxis, de melhor formação e controlo dos respectivos motoristas, da imposição e respeito de regras mínimas de conforto e de limpeza e limites máximos de idade das viaturas. Porém, nada disso põe minimamente em causa tudo o que acima referi.

Por outro lado, só na Europa, o serviço da UBER – e precisamente por ser considerado actividade ilegal e concorrência desleal no mercado – já foi proibido na Itália, na Bélgica e em diversas cidades espanholas (Madrid, por exemplo) e alemãs (Frankfurt).

Finalmente, se está ainda em preparação e apreciação uma “Proposta do Decreto-Lei que visa estabelecer o regime jurídico das plataformas e os requisitos de acesso e demais regime aplicável à actividade de transporte em veículo descaracterizado (TVDE)”, então é porque ainda não há norma que permita o funcionamento de tais plataformas e a sua permanência em actividade é, por isso, uma violação da lei. E mostra – tal como se refere na sentença de 23/4/2015 do Tribunal Cível de Lisboa que declarou a ilegalidade da UBER (processo nº 7730/15.OT8LSB-J13) – que esta, “com quem afinal são celebrados estes contratos de transporte ilegais, mediante a utilização de motoristas particulares/empresas locais, encontrou uma forma de contornar as limitações quer de acesso, quer de exercício de actividade sem incorrer nem nos riscos associados nem nos custos, estes suportados pelos locais”. Mas mostra também que o governo de António Costa se prepara para, decerto que em nome do “progresso” e da “liberalização do sector”, ceder à multinacional UBER e permitir, com um fato legislativo à medida desta, o que outros governos europeus e não europeus já proibiram.

E então se verá, mais claramente ainda, como o lobo despirá rapidamente a pele de cordeiro. Mas, entretanto, teremos então inúmeros trabalhadores que perderam o seu único ganha-pão.

A luta dos taxistas é, assim, e por tudo o que antecede, inteiramente justa.

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores e não reflectem necessariamente os pontos de vista da Redacção ou do Jornal.

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