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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

O poeta deu-nos música!

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Nobel da Literatura 2016 | Bob Dylan

É assim – como músico – que as pessoas o vêem, ou melhor, o ouvem! Por exemplo, os que não sabem inglês e só percebem o que quer dizer “Hey! Mister Tambourine Man”, o título dessa belíssima canção que nos ficou no ouvido! Sim, poderíamos afirmar que se trata de “poesia para o ouvido”, como alguém disse!

Eu, jovem, até já sabia alguma coisa de inglês (aprendera no Liceu), mas para mim, naquele tempo, o Dylan era só sons, música. Da melhor, mas só música. Revolucionária, mas só música. Do tempo desses extraordinários “cantautores” que agitavam as massas, sobretudo estudantis. Todos à esquerda. Revolucionários. É verdade que, nesse tempo, as letras contavam muito e eram “da pesada”, muito politizadas, de intervenção, ou com uma intensa expressividade existencial.

Mas não era preciso conhecer a letra. Nem havia Internet com as traduções. Bastava o título e o cantautor! Ouvi muito Dylan, gostava, mas nunca li nem fui induzido a descodificar a letra das suas canções. Só agora é que as fui ler. Graças ao Nobel. Muito belas, confesso. Em particular, as de “Mister Tambourine Man”, “Blowin’ in the Wind” ou “Like a Rolling Stone”.

Quem nunca se sentiu perdido nas mil veredas da existência e precisou de uma canção para sonhar, de um “Tambourine Man”? Quem não se sente, tantas vezes, a caminhar sem rumo por uma “velha rua deserta demasiado morta para sonhar” e a precisar de ouvir um Bob Dylan? Sim, o Dylan ajudava e ajuda. Em particular, com estas que falam do sentido profundo da existência…

Um Nobel para a Música?

A verdade é que o prémio foi para Bob Dylan, alguém que soube fundir poesia e música de forma poderosa, como cantor e autor, como poeta e músico, dando forma expressiva e intensa à sua inspiração e conseguindo atravessar o tempo e as suas vastas fronteiras, inspirando multidões um pouco por todo o mundo. Mas também é verdade que se o género é claro e linear na sua expressividade, já o prémio é oblíquo – meio-música/meio-poesia, mas invertendo a dominante da equação. Ou seja, trata-se de uma forma expressiva onde a música é dominante, sobredeterminando de forma decisiva o significante poético.

A poesia surge, pois, como suporte auxiliar e, mesmo enquanto tal, coopera sobretudo com a sonoridade, a rima ou a rítmica. Não tanto com a sua componente semântica. Às vezes há mesmo dificuldade em conciliar a intensidade rítmica com a suavidade e a delicadeza poética de certas letras. Seguindo esta linha selectiva, amanhã o Nobel da Literatura também pode ir parar a um pintor, a um bailarino, a um coreógrafo, a um realizador! Como o foi a um músico, embora “cantautor”. Porque não?

O Nobel e a esquerda

Bob Dylan sempre se colocou à esquerda e tem projecção mundial. Há muito. Mas as escolhas à esquerda não são de hoje, arriscando-se a Academia a que o Nobel um dia  venha a ser publicamente recusado, como aconteceu, em 1964, com Jean-Paul Sartre, que não queria ser “institucionalizado” (a Oeste como a Leste), mantendo-se livre, embora com simpatias pelo socialismo e pelos sistemas políticos de Leste.

Mas isso não viria a acontecer quando a Academia teve a ideia de o atribuir, em 1997, a Dario Fo – um “giullare” (“jogral”) de esquerda, ou mesmo da esquerda radical – “porque, seguindo a tradição dos jograis medievais, faz troça do poder, restituindo a dignidade aos oprimidos”.

Palavras que ecoaram forte na Academia Sueca, aquando da atribuição do prémio a este extraordinário Mimo.

Ou a José Saramago, bem conhecido pelo seu posicionamento também à esquerda! O caso de Dario Fo não foi menos “escandaloso” do que este. Foi ele próprio que o disse no seu discurso de investidura: “Mas sim, o Vosso” – dar o prémio a um jogral – “foi deveras um acto de coragem que soa a provocação”. E evocou Ruzante Beolco e os seus cânticos ao quotidiano e às pessoas comuns, as gargalhadas sobre um poder que não tolera o riso.

Com efeito, o Nobel de Fo provocou, como ele diz, uma “balbúrdia” entre os eleitos do Parnaso  e da literatura convencional que se viram preteridos e trocados por um jogral que usa  “palavras para mastigar, com sons esquisitos, rítmicas e modulações diferentes, até às loucas tagarelas sem sentido do ‘grammelot’ (sequência arbitrária de sons)”.

Por outro lado, como nome mundial, projectado precisamente pelas suas canções, Bob Dylan, ao contrário de muitos e relevantes poetas ou romancistas, mas pouco conhecidos, não precisaria de ser “reconhecido”, não depende dos 830.000 euros para sobreviver como artista nem do Nobel para ver divulgada a sua obra. Já tem que chegue.

Pode até parecer que, às vezes, a Academia faz escolhas fracturantes ou disruptivas para subir ao topo da agenda pública, ao gerar polémicas planetárias. E não têm sido poucas. Não creio que seja porque os tempos estejam a mudar, como disse a Secretária da Academia, uma vez que faz isto há muito e, por isso, não creio que, como alguém disse, de passo em passo a Academia termine na irrelevância!

O Testamento de Alfred Nobel e a polémica

O Nobel, por vontade testamentária de Alfred, é concedido no âmbito de cinco áreas: a Física, a Química, a Medicina/Fisiologia, a Literatura, a Paz. É o que lá está, embora também se atribua o Nobel da Economia (não previsto no Testamento). Compreende-se, pois, que a atribuição deste prémio esteja limitada a estas esferas e que a Bob Dylan não pudesse ser atribuído o prémio para a música. Simplesmente porque não está previsto.

Por isso, há polémica. E da grossa. Até o Nobel da Literatura Wole Soyinka já disse que, assim, no próximo ano, deverão atribuir dois Nobel da Literatura. Outros dizem que a música não precisa deste tipo de megafone, porque já tem uma enorme força reprodutora e de expansão, em si. Ou dizem mesmo que este prémio equivale a dar um Grammy Award a um qualquer escritor pela musicalidade da sua narrativa.

Até o Nobel a Dario Fo foi considerado por muitos deslocado por não haver um Nobel para o Teatro (tão-só para a dramaturgia, enquanto género literário). E ele era sobretudo um “giullare”, não um importante dramaturgo. E o Sartre recusou, como disse, porque não aceitava ser institucionalizado. Mesmo os Nobel da Literatura a Henri Bergson (1927) ou Churchill (1953) foram também algo surpreendentes, pelo desvio da norma.

E o mais curioso é que este Nobel tenha sido atribuído a Bob Dylan no mesmo dia em que morre o grande Dario Fo, encenador, actor, dramaturgo, esse outro italiano que se seguiu, em matéria de teatro e de Nobel, a Luigi Pirandello (Nobel em 1934), o fantástico dramaturgo/filósofo cuja genialidade foi descoberta e reflectida em inúmeros textos pelo jovem António Gramsci, outro italiano que teria merecido o Nobel (entre os vinte italianos que já o receberam).

Disse a Secretária da Academia que Bob Dylan “criou uma nova expressão poética no âmbito da tradição da grande canção americana”. Poderia ter dito, como alguém disse: criou “poesia para o ouvido”, que é mais do que dizer que criou “novas expressões poéticas”! Ainda que o registo estético deste órgão, o ouvido, seja, no caso da música, mais o da sonoridade, da fonética ou da rítmica do que o da semântica, sendo certo que a poesia tem ela própria uma musicalidade interior que até pode prescindir da sonoridade (expressa).

Finalmente

Em suma, a Academia sueca voltou a pôr a música e a poesia na agenda, pôs meio mundo a discutir o valor e o estatuto literário das letras das canções, valorizou a música de intervenção e o papel dos “cantautores”, repropôs o riquíssimo ambiente libertário e de protesto dos anos e da geração de sessenta.

E a valorização deste tipo de música é, de facto, muito importante porque traz à boca de cena o empenho político e social com dimensão de massas, sem dúvida, mas também a sofisticação estética. Ou seja, traz de facto uma revalorização da cidadania no plano estético.

Hans-Georg Gadamer, inspirando-se nas “Cartas sobre a Educação Estética do Homem” (1795), de Friedrich Schiller, propôs, em “Verdade e Método” (1960), uma espécie de imperativo categórico estético para a cidadania: “comporta-te esteticamente”! Ou seja: age como se a máxima da tua sensibilidade pudesse valer ao mesmo tempo, e sempre, como princípio de uma estética universal!

No momento em que escrevo, a Academia ainda não conseguiu contactar Bob Dylan e já há quem admita que poderemos vir a ter um novo caso Sartre, com Dylan a recusar o Nobel para não ser integrado ou institucionalizado. Ou a nem sequer agradecer. Teríamos novo debate à escala planetária.

E também é verdade que este prémio, por exclusão, acaba por deixar na sombra aqueles que só dispõem da escrita para firmarem publicamente a sua obra. Tinha razão Rainer Maria Rilke naquele Soneto de “Die Sonette an Orpheus” onde diz: “cantar é existir” (“Gesang ist Dasein”).

Mas também a escrita simples pode funcionar neste registo, ou seja, como solução da própria vida, embora sem o mesmo poder expressivo e capacidade de expansão universal. Mas quando estas duas dimensões se conjugam, então, a existência intensifica-se, aprofunda-se e expande-se, podendo acabar… num Nobel.

Foi o que aconteceu a Dylan. Parabéns, mesmo que ele o recuse. Até porque, como diz o poeta, é na renúncia que melhor se vislumbram os sinais de grandeza!

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores e não reflectem necessariamente os pontos de vista da Redacção ou do Jornal.

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