Não será esta uma pergunta que coloques a ti próprio, António. Confio que quando te candidataste ao lugar já tinhas ideias para fazeres obra. O que viveste até aí, que te catapultou para o patamar de verdadeiro homem do mundo, concedeu-te as experiências suficientes para conheceres os principais problemas e poderes reflectir assertivamente sobre as melhores soluções.
Apesar de seres ainda muito jovem, com o 25 de Abril tornaste-te notado como uma das promessas da política portuguesa, de uma nova geração que então emergiu. Fizeste carreira no PS como dirigente e eu cresci a apreciar a tua postura serena, de bom senso, em que as preocupações sociais eram sublinhadas nos teus discursos e notavam-se nas acções.
Ascendeste na hierarquia até ao topo e entre 1995 e 2002, ocupaste as altas responsabilidades que cabem a um primeiro-ministro. Mas foram as funções de alto-comissário da ONU para os refugiados, que certamente te deram os conhecimentos que te permitirão intervir cirurgicamente, como convém a uma instituição com aquele peso e tu bem sabes fazer.
Foram dez anos da tua vida, um período em que o termo «refugiados» passou a fazer parte do quotidiano mundial, por força da comunicação social, ao dar conta das inúmeras e maciças fugas de gentes do Norte de África e do Médio Oriente com destino à Europa, com as tragédias de todos conhecidas, mais aquelas que jamais conheceremos, num coro de intenso lamento e dor como o mundo há muito não conhecia.
Não pretendo abordar este, quiçá estranho, tratamento por tu, porque teria que recuar quarenta anos, quando ainda usavas bigode e eu ficava feliz quando, de longe-a-longe, tinha que rapar algumas pilosidades que iam crescendo algo anarquicamente. Tu eras já um quadro importante do também jovem PS e tinhas a responsabilidade de acudir a certas necessidades que as delegações do partido dos arredores da capital iam sentindo para organizar as famosas e então, para mim, compridas e chatas sessões de esclarecimento. Por isso, várias vezes te deslocaste ao Cacém, onde eu residia na altura e era um quase inconsciente militante da JS.
Podia também fazer referência à explosão de alegria que senti quando em 1995 o PS, contigo como secretário-geral, ganhou as eleições, afastando para o canto da história o que restava dos dez anos do cavaquismo tecnocrata e socialmente tacanho. Aí foste a esperança, criaste uma expectativa que foste capaz de em parte cumprir, com uma aposta forte na educação e na cultura, que haviam sido chutadas para o beco mais esconso da política nacional nos últimos anos.
Na altura já eu não era militante de coisa alguma há muito tempo, a não ser, como continuo e continuarei a ser, porque me está agarrado à pele, da cidadania, mas a alegria empurrou-me, como a outros milhares de portugueses, para o espaço fronteiro à Torre de Belém, onde tu foste fazer o discurso da vitória, tendo Vangelis como banda sonora, mas também, para quem ali estava, da derrota do cavaquismo e dos seus seguidores, que nos fez regressar a uma espécie de salazarismo em democracia e talvez por isso a cores. Sensação estranha aquela.
Pouco depois de abandonares São Bento, andaste dez anos pelo mundo no cumprimento da missão que assumiste ao venceres o concurso internacional para o lugar de alto-comissário para os refugiados da ONU.
Ia-te acompanhando pelas notícias e, com satisfação, embora sem surpresa, foi-nos chegando a informação reconfortante dos méritos da tua prestação, dos cuidados que punhas nas questões humanitárias que tocavam os mais desvalidos de entre todos quantos, apesar do desespero ou talvez por ele, não lhes faltou a coragem de partir em busca de paz e da tranquilidade que só ela potencia.
De enaltecer, também, a gestão que fizeste dos sempre escassos recursos, ao diminuíres o peso da máquina administrativa que comandavas e os desviares para quem deles mais precisava, os refugiados, afinal a razão da criação do Alto Comissariado. Por aqui se vê que as tuas preocupações não se esgotam nos problemas mais mediáticos. Tu olhas à volta, sentes ou pressentes e procuras ser justo, com uma visão das questões humanitárias que em ti cava mais fundo e ultrapassa a ideologia.
Aqui entramos em matéria que não partilhamos, mas isso não pesa nada. Se todos os homens religiosos fossem como tu, talvez eu não deixasse de acreditar. Na verdade, pelas ligações que sempre mantiveste com a Igreja Católica, mas também porque te fizeste homem quando se começavam a ver os primeiros resultados palpáveis do Concílio Vaticano II, no que concerne a uma Igreja mais virada para o Homem e menos para ela própria; uma Igreja mais próxima de Jesus Cristo como gostamos de o entender – homem justo e bom -, porque mais solidária com quem sofre, bebeste dessa cultura e tomaste-a como tua, até porque, no fundo, ela casa na perfeição com os fundamentos humanistas do socialismo democrático a que cedo aderiste.
Por tudo quanto para trás ficou, facilmente se percebe a enorme alegria que senti quando naquele domingo, que ameaçava passar rápido, como todos, mas acima de tudo sem surpresas, o teu nome começou a surgir no rodapé da televisão como vencedor da última e decisiva votação no Conselho de Segurança, para secretário-geral da ONU, e então sem votos contra.
Por outras palavras, a breve prazo serias tu o ocupante do lugar. A surpresa foi muita, não por desmereceres a vitória, bem pelo contrário, mas devido aos jogos de bastidores que haviam surgido nos últimos dias. A entrada na corrida de uma segunda búlgara, que contava com o apoio declarado da Alemanha, levou-me a concluir que, apesar das vitórias convincentes que havias obtido em todas as eleições preliminares realizadas até ali, vitórias que resultaram das provas que prestaste e logo da demonstração das tuas competências, saber e cultura, jamais chegarias ao lugar. Foi isto que pensei, mas pensei mal.
Em jeito de defesa, recorro à convicção que senti de que a tal segunda senhora da Bulgária não avançaria naquela fase do concurso senão tivesse obtido a garantia da vitória. No meu sentir, errado já se vê, calejado no entanto pelos constantes atropelos à ética, de que nos vamos apercebendo, a Alemanha já se havia entendido com os EUA e com a Rússia e, vencidos estes dois obstáculos, o caminho ficaria escancarado para levar os restantes membros permanentes do Conselho de Segurança a apoiá-la e com eles, todo o Conselho.
Tudo estaria bem cozinhado como temos aprendido e tanto assim era que, sabendo que aquele era o dia decisivo, fiquei desligado, abstraindo-me com as doçuras de um domingo caseiro e sereno, veloz por ele, porque corria que se desunhava, mas sereno no seu passar, caseiro e doce.
Daí a enorme, mas muito agradável surpresa, não tanto por seres português, que, claro, também teve o seu peso, mas essencialmente por ter a certeza de que contigo aos comandos, a ONU, que apesar de algum desgaste continua a ter um papel único e determinante na condução deste nosso mundo, ficará muito melhor entregue.
Pelas tuas características pessoais de bom diplomata, de humanista dotado de uma inteligência cortante e perspicaz, és o homem certo para aquele lugar nesta fase turbulenta que este nosso mundo atravessa.
E agora, António? Era o ponto de partida e nesta altura do texto, com cerca de 5.500 caracteres, seria talvez suposto que algumas das respostas ou pelo menos algumas questões com que te vais debater a partir de Janeiro, estivessem já visíveis, mas não.
Como já vai longa a escrita, fica a promessa de que, em nova investida pela crónica como género, abordar o que aqui não consegui, procurando então obter o que não me foi possível, prometendo igualmente manter o título, apenas com um acrescento: «Parte II». Boas…